Skip to main content

O tema militar sempre foi um dos assuntos mais comuns abordados pelos jogos. Franquias como Call of Duty e Battlefield são, hoje, as mais famosas no que se refere a abordar conflitos militares, seja simulando guerras entre as potências da atualidade ou revivendo conflitos passados. Contudo, mesmo fora do gênero de FPS, os jogos tendem a tecer uma narrativa sobre os conflitos sob a ótica daqueles que estão na linha de frente – ou, no caso dos jogos de estratégia, sob quem está no comando daqueles que estão na linha de frente. 

O que muitos esquecem é que, em uma guerra, as maiores vítimas não são os militares envolvidos diretamente nas batalhas, mas sim a população civil. Presos dentro de uma área e sem meios de defesa, os cidadãos ficam à mercê de bombardeios, trocas de tiro e, muitas vezes, à brutalidade das tropas. A verdade é que, mesmo que muitos jogos sejam aclamados pela ambientação e por elementos narrativos, gamificar o lado civil de conflito parece pouco viável e atrativo. 

Indo na contramão do senso comum, This War of Mine foi uma tentativa de juntar o gênero de sobrevivência com o drama dos que estão indiretamente envolvidos com a guerra. Hoje, 8 anos após o seu lançamento, é notável que a tentativa dos desenvolvedores foi um sucesso – basta olhar as críticas e ver a recepção extremamente positiva –, mas o contexto atual torna esse jogo ainda mais relevante. 

Inspirado pela Guerra da Bósnia, This War of Mine é brilhante ao relatar o dia a dia dos civis que, sem opção, buscam se proteger no que sobrou da cidade. Mas, antes de detalhar o jogo, é preciso entender a natureza do conflito.

Um pesadelo chamado Sarajevo

Em 1929 a República da Iugoslávia foi criada. Na prática, tratava-se de um país composto por diversos grupos que habitavam a península balcânica. Sob a liderança de Josip Tito, o país fora governado com mão de ferro durante décadas. Com a sua morte, em 1980, a união interna Iugoslávia começou a ruir. Durante a década de 1990, a Croácia e a Eslovênia foram as primeiras localidades a se tornarem independentes. O movimento de ambos os países contribuiu para que, no mesmo ano, a Bósnia também tivesse pretensões de se separar da República.

Acontece que, diferente dos outros países que conseguiram a independência, a Bósnia era um local composto por diferentes grupos étnicos. Além dos bósnios, havia sérvios e croatas habitando a região, onde cada grupo tinha interesses diferentes. Os sérvios eram boa parte da população, e não aceitariam se desvincular com a pátria de origem. Desse modo, a tentativa de independência, iniciada pela população bósnia, não era vista com bons olhos. 

Sarajevo durante a Guerra da Bósnia

Um referendo relativo à independência foi feito entre fevereiro e março de 1992, mas a população étnicamente sérvia optou por boicotar a votação. Como resultado, a separação foi aceita de forma quase unânime, levando ao início das hostilidades. Bósnios e sérvios iniciariam a guerra em abril de 1992.

Em meio aos acontecimentos, um dos episódios mais marcantes dessa guerra foi, sem dúvidas, o cerco de Sarajevo. Os sérvios cercaram a capital da Bósnia durante 4 anos, no que é, até hoje, o maior cerco da história moderna. A ideia era causar o maior sofrimento possível aos civis até os bósnios aceitarem as suas exigências. Fora da cidade, todo maquinário sérvio estava posicionado a fim de bombardear a cidade, enquanto na parte interna vários atiradores de elite estavam posicionados em lugares estratégicos. 

A guerra interna

Uma vez sabendo o inferno que os cidadãos de Sarajevo viviam, fica fácil de imaginar onde estão os elementos de sobrevivência de This War of Mine. Obter recursos em uma cidade totalmente isolada e repleta de obstáculos não é uma tarefa fácil, e, para isso, o jogo dispõe de eventos e de missões em busca de suprimentos. 

A cada dia, o jogador deve escolher como alocar os raros recursos disponíveis, além de tomar decisões quanto aos membros do abrigo e decidir qual o papel de cada um. Caso opte por roubar recursos das bases militares e rebeldes, a dificuldade estará em saber que, diferentemente da maioria dos jogos, os personagens são civis sem treinamento algum para batalha. Nessa parte, a impotência dos personagens frente aos soldados armados lembra um pouco a fragilidade dos personagens de Silent Hill em relação às criaturas.

A missão de decidir o que deve ser usado também é cruel. A falta de recursos será rotineira, e quem deseja sobreviver deve fazer escolhas que, em situações normais, são desesperadoras. Todas as ações têm como fim único a sobrevivência, e não será incomum ter que deixar personagens sem alimentação por dias com o objetivo de utilizar o estoque de comida da maneira mais eficiente o possível.

Os civis são os mais impactados pela guerra

Fora a parte material, o psicológico também sobre danos terríveis. O isolamento e o desdobramento da guerra podem deixar os personagens sem esperança, fazendo com que, eventualmente, eles tenham crises e, no pior dos casos, acabem falecendo.

Eu não sei como os habitantes de Sarajevo sobreviveram por quatro anos, mas, durante o jogo, esse período de cerco é bem menor – não vou dizer o quanto, mas, caso você jogue, saiba que não precisará passar 1606 dias racionando recursos.

Kiev, 30 anos depois

Logo no início da invasão russa na Ucrânia, a 11 bit studio, responsável por This War of Mine, anunciou que irá doar toda a renda proveniente das vendas do título para as vítimas da guerra da Ucrânia. Bem, com a breve explicação da narrativa e dos elementos contidos em This War of Mine, não é difícil entender a correlação entre o jogo e a Guerra da Ucrânia.

No momento em que tropas russas avançam e fecham o cerco em Kiev, milhares de pessoas correm para as fronteiras na esperança de se livrarem do inferno da guerra. Os que ficam, porém, terão que lidar com a possibilidade de presenciarem atrocidades tão nefastas quanto as realizadas durante a Guerra da Bósnia. 

Por aqui, volto a retomar o que disse anteriormente nesse artigo: em uma guerra, as maiores vítimas são os civis. Jogos como This War of Mine, além de nos divertirem, servem para dar uma noção do sofrimento da parte mais fraca de um conflito. Em meio às explosões, ao som dos caças sobrevoando a cidade e aos tanques invadindo as ruas, cada cidadão ucraniano convive com a incerteza do que lhes aguarda. Independente das razões que levaram ao conflito, é inegável que pessoas inocentes, que nada têm a ver com as reivindicações lançadas, estão diretamente envolvidas nesse jogo de interesses.

O que acontece hoje com os ucranianos pode se tornar o que aconteceu antes na Bósnia, no Iraque, no Afeganistão, na Chechênia, em Nagorno-Karabakh e em outras invasões que desencadearam em conflitos de grande escala. Em todos esses eventos, milhares de civis sofreram as consequências de decisões de terceiros, cujo impacto em suas vidas fora, muitas das vezes, irreversível. 

Tropas russas fecham o cerco em Kiev

Adiciono também que, além dos ucranianos, existem outros que serão impactados diretamente pela guerra. No momento que escrevo esse artigo, embargos estão sendo discutidos a fim de sangrar a economia russa. Em um embargo, mais do que o estado, os principais prejudicados são os cidadãos. Milhões de inocentes russos também sofrerão com efeito colateral do desabastecimento proporcionado pelos outros países.

Se você quer entender os horrores da guerra pelo prisma do lado civil, considere comprar This War of Mine. E, caso você entenda que vidas inocentes estão em risco, hoje, 30 anos após o cerco de Sarajevo, com o avanço da internet e dos meios de pagamento, temos a chance de contribuir, mesmo que um pouquinho, para aliviar o sofrimento das vítimas. Mais do que mostrar solidariedade nas redes sociais, com um pouco menos de 10 reais você pode ajudar ativamente os afetados diretamente pelo conflito. Então não deixe essa chance passar: compre This War of Mine e ajude a salvar vidas.