Há umas duas semanas, foi publicada no Gamasutra uma coluna de James Portnow, CEO da Divide By Zero, onde ele faz uma “análise regional detalhada” (palavras da própria Gamasutra) do mercado brasileiro. À primeira vista, realmente parece uma análise muito bem feita e detalhada… Até a gente parar pra pensar um pouco e começar a notar algumas coisas um pouco embaraçosas.
Logo no começo, Portnow diz como conseguiu os dados para seu artigo: apareceu uma oportunidade de negócio no Brasil e ele tentou se informar sobre o mercado lá fora. Não conseguiu nenhuma informação, então resolveu ir com a cara e a coragem. Chegando no Brasil, obteve as informações que precisava em várias reuniões com desenvolvedores brasileiros, além do pessoal que trabalha em certos projetos educacionais e lojistas. E, surpreendentemente, a visita também incluiu um tour na Uruguaiana, ponto da pirataria no Rio de Janeiro.
Qual o principal problema dessa amostra de dados? Quanto aos dados, nenhum. Se a gente pegar a matéria e ler de cabo a rabo, podemos ver que os dados em si são perfeitamente corretos. Só que, no momento em que Portnow faz algum tipo de análise com esses dados, não é ele que está analisando; é o pessoal que se reuniu com ele. Em outras palavras: digamos que Portnow foi um “ghost-writer” dos desenvolvedores brasileiros, loucos para pintar o Brasil como um local fantástico e cheio de possibilidades.
Sim, tem muita coisa certa ali. Acho que ele acertou na mosca sobre o problema do financiamento – que não existe apenas para empresas de games, é algo estrutural da economia brasileira. Só que a primeira impressão que ele me deixou já foi ruim. Logo no primeiro parágrafo do “overview” temos a primeira pérola: “[O Brasil] tem (…) uma população altamente educada, grande o suficiente para [o país] virar a próxima Coréia”. Não acredito que essa comparação tenha saído da cabeça de Portnow, e se foi um brasileiro ele obviamente não estudou o que fez da Coréia do Sul um país tão promissor. Essa “população altamente educada” não é grande o suficiente para o Brasil virar a próxima Coréia, é grande o suficiente para o Brasil virar uma sub-China ou sub-Índia.
O que levou a Coréia do Sul aonde está não foi um grande número absoluto de pessoas com educação superior, foi um grande investimento em educação para toda a população, que levou décadas para dar resultados. Sim, no Brasil existe uma grande classe média e média-baixa que se esforça, faz cursos superiores e tudo mais. Só que ainda estamos falando de uma minoria. O Brasil é uma grande oportunidade pelo mesmo motivo que a China e a Índia também são: porque a população é tão grande que, mesmo tendo apenas uma pequena elite capaz de comprar e de assumir posições de alto gabarito, ainda estamos falando de um mercado potencial (de consumo e de trabalho altamente qualificado) de milhões de pessoas.
Seguimos com a análise da pirataria, e Portnow repete o mantra: “o mercado de games não é viável por culpa dos impostos, por causa disso os jogos oficiais saem por 250 reais, são 140 dólares, que absurdo!, por isso que todo mundo pirateia”. E continua com todas aquelas comparações que já estamos cansados de ler: consoles no Brasil custam duas vezes mais que nos EUA, e etc. Essa insistência que todo mundo tem com os impostos já deixou de ser simplesmente “irritante” para passar a ser algo que atrapalha o debate. Já falei aqui mais de uma vez: os impostos não são o problema – pelo menos não o problema principal. O problema principal são as altas margens de lucro que as empresas gostam de enfiar em seus produtos.
Todo esse pessoal que faz comparações do tipo “o jogo/CD/filme tal vendeu 10.000, mas 400.000 pessoas piratearam” é idiota ou se acha muito esperto, porque acredita (ou tenta fazer que os outros acreditem) que, se não existisse pirataria o jogo/CD/filme tal teria vendido 410.000 cópias. Não, aquele pessoal que vai na banquinha do camelô pra comprar 20 jogos de PS2 a “cinco reau” cada um vai continuar pirateando mesmo que o jogo original custe 50 reais. Essa molecada é uma carta fora do baralho do mercado, e simplesmente combater a pirataria não vai trazer esse pessoal pra legalidade.
O que se deve fazer é trazer quem não está disposto a pagar 250, mas estaria disposto a pagar 120, 150, 175. Só que o empresário brasileiro é preguiçoso e, em vez de arregaçar as mangas, tirar a bunda da cadeira e assumir um pouco de risco diminuindo sua margem de lucro, fica chorando “ah, mas o imposto é de seiláquantos por cento enquanto nos EUA é de poucoquasenada por cento, que absurdo, por isso que a pirataria é tão grande e esse país não vai pra frente, governo malvado feio bobo cara de melão”. Só que a gente vê a Microsoft vendendo Halo Reach por 160 reais no Submarino e a Sony cortando seus preços, e não dá pra aguentar essa postura de moleque chorão dos empresários brasileiros. Senhores, assumam algo de risco e DEPOIS cobrem alguma atitude do governo.
Depois, Portnow fala sobre os desenvolvedores brasileiros “viáveis”, indicando que eles estão voltados para o desenvolvimento não-arcade, para PC ou celular. Verdade, mas aí é um misto de falta de um alicerce sólido e medo de arriscar – ou acomodação. Entendo que uma empresa pequena não possa tentar um jogo full para um console, porque é um investimento pesadíssimo. Mas eu vejo o pessoal da Over The Top Games, daqui de Madrid (Espanha), e me pergunto porque algum brasileiro não tenta isso. São quatro caras que saíram de seus trabalhos em desenvolvedores já existentes, montaram uma empresa e, já no seu primeiro jogo, deram o salto para WiiWare – lançaram o premiado NyxQuest, um jogo muito bom que foi indicado para o IGF este ano. Temos muita gente por aí que já tem experiência comprovada e poderia dar esse salto facilmente.
Agora, o que achei engraçado pra burro foi quando Portnow psicografou o pessoal com quem ele se reuniu e soltou algumas pérolas sobre os desenvolvedores brasileiros: “Os desenvolvedores do Brasil querem começar já fazendo um jogo AAA”, “todo mundo quer ser designer”… E o melhor, a grande vantagem do desenvolvimento de games no Brasil não é o mercado inexplorado, é o fato de que “os salários são mais baixos que nos EUA”. Verdade, ele disse isso.
Mas sem sombra de dúvida a GRANDE besteira, com maiúscula, é o que ele fala sobre a “TV interativa”, a “versão brasileira da televisão digital por cabo”. A TV digital brasileira tem sim possibilidade de interação, com o middleware Ginga (mania besta de brasileiro de botar esses nomes cretinos, coisas feitas aqui na Espanha não têm nomes como “tourada”, sabiam?). Só que Portnow fala que, “em 2016 [data de fim das transmissões analógicas no Brasil] haverá na prática um novo console com uma base instalada de pelo menos 150 milhões”, o que é um exagero tão grande que chega a ser cômico.
Qual o problema? Um “console” significa uma plataforma de jogos. Em outras palavras, um aparelho que o dono compra tendo como um dos principais objetivos… jogar. Eu não consigo parar de pensar que, desses 150 milhões de aparelhos, bem mais do que 90% serão comprados com outro objetivo – sei lá, ver televisão, talvez? – e seus donos não terão a mais mínima intenção de comprar jogos. Os menos de 10% que poderiam querer comprar televisões para jogar, acredito que terão dinheiro para comprar um console independente e não teriam intenção de comprar os jogos primários do Ginga.
Podemos supor que as televisões entrem de cabeça no mercado de jogos, com anúncios no intervalo da novela de um joguinho nojento do Big Brother, o que geraria a demanda. Mas ainda temos outro problema. As televisões podem transmitir páginas com as informações sobre os jogos disponíveis (totalmente factível, tanto que é o método de interação que elas estão planejando atualmente). O usuário entra na página e escolhe o jogo com o controle remoto. Como o provedor do serviço saberá que o usuário quer aquele jogo, para poder enviá-lo? Simples, ele não sabe: todos os jogos podem ser enviados sempre durante a transmissão, e o aparelho vai recebendo os dados e “montando” o download. No entanto, um modelo de negócio pressupõe que haverá uma entrada de dinheiro para manter esse modelo. Eu até posso imaginar que as televisões paguem por esses jogos e os distribuam de graça, apesar de que isso não seria uma grande evolução com relação ao mercado atual de “jogos-anúncio” que existe hoje. Mas, para que fosse algo grande de verdade, seria necessário uma loja, com pagamentos por parte do usuário final. A pergunta do milhão é: como fazer isso? Seria necessário um retorno de dados para o provedor para efetuar o pagamento. Ligamos a televisão na linha telefônica? Obrigamos o usuário a enviar uma mensagem de texto no celular? De qualquer forma, é pouco prático e retira do mercado as pessoas com menos possibilidades.
Em resumo: o mercado de TV interativa pode sim ter algum potencial, mas é muito menor do que Portnow quer fazer parecer.
No final da matéria, a gente vê que Portnow ficou realmente entusiasmado com o mercado brasileiro. Nada contra, realmente acho que o mercado tem muito potencial. Só que ele se entusiasmou com a possibilidade de ser uma espécie de “embaixador” no exterior do videogame brasileiro (o que lhe renderia uns trocados, obviamente) e acabou engolindo o canto de sereia dos brasileiros – que também obviamente venderam seu peixe, exagerando bastante na dose. O mercado brasileiro tem um TREMENDO potencial, e pode ser um grande negócio. Mas quem quiser entrar não pode esperar que vai conseguir um lucro tremendo sem colocar a bunda na janela, porque o mercado brasileiro (e não só para games) não é para os acomodados.