O gênero de horror é muito parecido com a comédia. As pessoas normalmente pensam que é fácil, afinal de contas quem nunca deu um susto ou contou uma piada? Mas são os dois gêneros mais complicados. Porque sim, qualquer um pode dar um susto ou contar uma piada. Mas, se a pessoa está esperando levar um susto ou dar risada, o susto e a risada não serão tão fortes. Em outras palavras, os dois gêneros têm que trabalhar levando em conta as expectativas do público e subvertê-las. Se o público não está esperando o que vai acontecer, a sua reação será muito maior.
Nos jogos de horror, não é o que normalmente acontece. Todo mundo espera levar sustos com Resident Evil, The Evil Within, Silent Hill, da mesma forma que todo mundo espera assustar-se com A Hora do Pesadelo, Sexta-Feira 13 ou Alien. E atenção, não estou dizendo que esses jogos / filmes sejam ruins, muito pelo contrário. Só digo que, se você está jogando um Resident Evil e seu personagem está dentro de uma mansão abandonada ou na praça central de uma aldeia esquisita no meio do nada, então você inconscientemente já fica esperando que algo vai acontecer; o cachorro zumbi saltando pela janela, o zumbi esperando depois da esquina. Então o jogo precisa usar o recurso do susto o tempo todo.
Mas filmes que subvertem as expectativas do espectador, da maneira que seja, não precisam recorrer a esses esquemas. Não significa que não usem o recurso do susto, mas apenas o fato de retirarem o espectador de sua zona de conforto já o deixa incômodo, movendo-se na cadeira. Então metade do trabalho já está feito, antes mesmo do susto.
O Segredo da Cabana (The Cabin In The Woods, Drew Goddard, 2012) usa o velho clichê de “cinco amigos em uma cabana no meio do nada”, mas intercalado com cenas de outros personagens em um ambiente industrial, que parecem estar controlando o que acontece com os garotos e que mencionam outras equipes espalhadas pelo mundo, dando a impressão de que nada é o que parece e deixando o espectador tentando adivinhar o que está realmente acontecendo.
Corra! (Get Out, Jordan Peele, 2017) começa como um drama normal, com um casal interracial (Chris, negro, e Rose, branca) indo visitar a família dela no campo, para que ela o apresente a sua família. E tudo parece normal… menos o que não parece. A empregada negra desliga o carregador do celular de Chris e tem uma reação perturbadora, rindo e chorando ao mesmo tempo, quando ele vai falar com ela. Os pais dela e seus amigos se comportam de maneira amigável com ele… mas estranhamente uma das amigas dos pais de Rose está casada com um negro muito mais jovem. Que usa expressões antiquadas e que nunca tira o chapéu… e que tem uma espécie de ataque epiléptico quando Chris tira uma foto com flash, começando a usar expressões modernas. Algum tipo de conspiração está acontecendo, mas o espectador não sabe o que pode ser.
É exatamente essa a filosofia do jogo cult do momento, Doki Doki Literature Club (Steam). Lançado há pouco mais de um mês como freeware, com download tanto através do Steam como na sua página oficial, à primeira vista o jogo do Team Salvato (na verdade, Dan Salvato, conhecido na scene de Smash Bros por ser um dos responsáveis pelo famoso mod Project M) é um visual novel dos mais bobos. Quatro meninas que convencem o personagem do jogador a se unir a um clube de literatura. Como tarefa diária do clube de literatura, o jogador deve escrever um poema – o que, em termos jogáveis, significa um mini-game onde você precisa escolher vinte palavras, que te darão mais pontos com uma ou outra garota. Mas as coisas não são tão cor-de-rosa como parecem.
[miptheme_alert type=”danger” close=”false”]Alerta de spoilers! Vou tentar mantê-los ao mínimo possível, mas considerem-se avisados.[/miptheme_alert]Claro, você está esperando que aconteça algo, porque o jogo já te avisa desde o começo que podem haver imagens perturbadoras e que o jogo não é recomendado para menores de 13 anos. Mas você começa a ler os poemas das meninas, que usam metáforas muito profundas, e parece que o aviso era por causa disso.
Mas, ainda assim, algo está errado. De vez em quando, você está lendo as falas de uma das meninas, ela muda de posição no meio de uma frase, e como você está com a visão centrada no texto, ela parece que acaba de destapar os seios e você inconscientemente perde a concentração. Os poemas começam a ter imagens mais e mais perturbadoras, com uma das meninas escrevendo que retira pedaços de felicidade de dentro de si e os coloca em garrafas por toda a casa só para que seus amigos possam vê-los.
Outra menina diz que tem um estranho fascínio por facas, tem uma coleção delas em casa e anda sempre com uma na mochila. A outra vai visitar o personagem para fazer uns cupcakes, e ao terminar diz com uma expressão um pouco temerosa que não pode comer nenhum porque o pai dela cozinha hoje e ela precisa comer tudo porque senão o pai dela fica muito nervoso. E no dia seguinte, depois de um acontecimento terrível, o jogo fecha sozinho. Você o abre outra vez e a tela de início tem um glitch. Você vai tentar recuperar o seu save, pra tentar retomar o jogo antes do que aconteceu… e os seus saves desapareceram!
Sem outra opção, você começa de novo o jogo. Parece ser a mesma história… mas com uma omissão importante. E começam a aparecer vários glitches perturbadores, mudanças de música e a sensação de que uma das garotas está assumindo muito mais protagonismo do que antes…
[miptheme_alert type=”danger” close=”false”]Fim dos spoilers[/miptheme_alert]O jogo usa truques que outros jogos já usaram antes, incluindo o meta-game – é recomendável rodar o jogo em uma janela, com o diretório do jogo aberto de uma maneira que você possa ver o conteúdo da pasta enquanto joga. Mas o que faz com que o impacto seja tão grande e perturbador é a maneira como o jogo usa a expectativa do jogador. É um visual novel, o gênero mais anti-jogo e anódino que existe, e ainda por cima tudo é cor-de-rosa e kawaii. Nunca vai acontecer nada diferente. Até que acontece.
Doki Doki Literature Club é uma experiência difícil de descrever. E é uma experiência tão perturbadora que eu quase recomendo buscar alguns spoilers (mais do que eu coloquei aí em cima; a página sobre o jogo no TV Tropes é uma boa pedida), para reduzir um pouco o impacto. Talvez seja o jogo mais ousado do ano, pela maneira corajosa como vai contra tudo que se espera dele; e exatamente por isso é absolutamente essencial.