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Ontem, eu perdi o ônibus para voltar pra casa depois do trabalho, aqui na Espanha. O painel eletrônico do ponto de ônibus falava que o próximo ia passar só depois de vinte minutos, então resolvi procurar algum lugar que vendia revistas pra passar o tempo.

Achei uma lojinha 24 horas que vendia revistas também. Pena que a seleção era uma porcaria. A única coisa legível era a Rolling Stone do mês. Mas a matéria principal era uma lista com os 50 melhores discos do pop-rock espanhol. Como eu sou meio fanático por essas listas de “Best of”, resolvi comprar. Mas aí eu vi… Lá no alto, uma chamadinha estreita gritava:

“GUITAR HERO 5: A MELHOR SEQUÊNCIA DE TODOS OS TEMPOS!!!”

Meu sentido de aranha começou a apitar. Depois do desastre que foi a capa para Guitar Hero: Metallica, isso parecia ainda pior. Contra meu bom senso, resolvi comprar. Mas a verdade é que eu me diverti pra caramba. A matéria sobre GH Metallica ainda se fazia passar razoavelmente por algo jornalístico, com uma boa entrevista com o Robert Trujillo. Mas essa é tão publicitária (apesar de ainda ter o título de “reportagem”) que é uma das melhores peças de humor involuntário do ano. Só perde para o Kurt Cobain imitando o Flavor Flav e gritando “YEEEEEEE BOYEEEEEEE” no vídeo de Guitar Hero 5 que o amigo do Gamerview, Pablo Miyazawa, postou no blog dele.

Chega a ser “comovente” a maneira como o texto chega às raias do desespero para fazer crer que The Beatles: Rock Band não existe. Além de, obviamente, nem sequer mencionar a Harmonix e ainda dizer com todas as letras que Neversoft, RedOctane e Activision “criaram” Guitar Hero. A matéria de duas páginas com texto grande – mais duas páginas com uma foto enorme do avatar do Santana no jogo e o título “Os dez mandamentos de Guitar Hero 5” – insiste duas vezes que “não se pode comparar GH com nenhum outro jogo, GH é supremo!” O mais engraçado foi ver como um dos “mandamentos” é a insinuação de que GH5 é o “único” jogo onde você pode jogar com músicas dos Rolling Stones, fazendo parecer que é a melhor coisa que já aconteceu na história da humanidade. Vale lembrar que “Paint It Black” estava em Guitar Hero 3 e “Gimme Shelter” em Rock Band 1.

No entanto, mesmo no meio de todo esse ruído, deu pra recuperar algo intrigante: o “primeiro mandamento” dizia que Guitar Hero passou a ser a principal forma de introdução da “religião do rock” para as novas gerações. Fico meio com o pé atrás com esse tipo de afirmação, principalmente por vir de uma peça publicitária como essa, mas ela até pode ter um fundo de verdade – também porque outros meios um pouco mais sérios, como o New York Times e o Los Angeles Times, mencionaram algo parecido. Com o matiz de que incluíram Rock Band também, claro.

No entanto, eu particularmente não concordo. Guitar Hero e Rock Band são jogos para os já “iniciados” no rock n’ roll. Servem sim para introduzir novas bandas para o público – eu mesmo conheci as fantásticas Rise Against e Social Distortion através do GH3. Mas quem afirma que a garotada vai começar a gostar de rock por conta de videogames está caindo no jogo do Robert Kotick, presidente da Activision.

Há algumas semanas, Kotick afirmou que a indústria de games tem o potencial de “eclipsar” a indústria do cinema em um prazo de cinco anos, graças principalmente ao avanço da próxima geração de hardware e dos métodos de animação facial. Além disso, há aproximadamente um ano ele chegou a sugerir que, graças à publicidade que Guitar Hero dá às bandas cujas músicas estão no jogo (fato demonstrado pelo “salto à fama” que a banda Dragonforce deu depois que seu Through The Fire And Flames virou um rito de iniciação para Malmsteens pré-adolescentes), quem devia gastar dinheiro para ter músicas em GH deveriam ser as gravadoras, e não a Activision. Afirmação da qual ele provavelmente se arrependeu alguns meses mais tarde, já que dizem que essa “falta de respeito” foi um dos principais motivos para o rechaço de sua oferta para conseguir os direitos das músicas dos Beatles.

Muita gente chama Kotick de imbecil pra baixo por conta dessas coisas que ele fala, mas ele está absolutamente certo – do ponto de vista de um presidente de empresa, que é o que ele é. Mas tem muita gente que interpreta que todo mundo que trabalha nessa indústria vital é antes de tudo um gamer, e isso está muito longe de ser verdade. Sim, no topo da cadeia alimentar da Nintendo os manda-chuvas amam o negócio. Peter Moore, chefe da EA Sports, é outro que adora videogames. Mas a imensa maioria dos executivos da indústria vê isso apenas como um negócio – e isso não está errado, longe disso. Estão errados os jornalistas e consumidores que acham isso, e que acabam interpretando as vendas como uma mostra de um fenômeno cultural inexistente.

Sim, a indústria do videogame está no topo, subindo cada vez mais, enquanto a indústria musical fica tentando encontrar uma maneira de sobreviver a esse mundo cruel. Mas ninguém se lembra que todo mundo continua ouvindo músicas (ainda que não esteja pagando por elas, mas isso é outro problema que não é o objetivo desse artigo). O público alvo de Guitar Hero e Rock Band não é muito diferente, na essência, do público de Disney Sing It. São pessoas que amam aquele tipo de música, aqueles artistas, aquele estilo. Aliás, provavelmente, as mesmas pessoas que jogam Disney Sing It hoje no futuro jogarão Guitar Hero e Rock Band. Porque estão crescendo como pessoas que amam a música.

Que a pessoa não pague por algo não significa que essa coisa não tenha significado para ela, que não altere sua vida. A música está por aí há séculos, modificando vidas e impactando a sociedade. O cinema há décadas está fazendo obras que refletem essa mesma sociedade, ajudando-a a crescer e refletir. Já os videogames estão por aí há pouco mais de vinte anos. Têm o potencial de ser um meio cultural de tanto impacto quanto a música ou o cinema. Mas por enquanto ainda não fazem mais que se aproveitar (no bom sentido) da influência desses outros meios culturais já estabelecidos para poder sair de sua infância.