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É pouco provável que uma criança possa explicar o conceito de “sociedade” para uma pessoa, seus pequenos cérebros na grande maioria das vezes sequer conseguem abraçar tais conceitos alienígenas para sua jovem idade. Entretanto, aos poucos, vemos as mesmas se adaptando às normas e costumes estabelecidos pelos adultos, professores, pais ou guardiões responsáveis pelas mesmas. Porém, o que acontece quando essas jovens mentes são nutridas e preenchidas com pensamentos e ações corruptas e doentias? Quando o próprio conceito da vida em sociedade se torna deturpado desde as primeiras lembranças? Bom, isso é o que podemos observar em um jogo lançado em 2006 para Playstation 2, chamado Rule of Rose.

Meu primeiro contato com o título foi na casa de um amigo, que me dizia ter comprado o jogo em busca de algo como Silent Hill, porém não gostou do título e disse que se eu quisesse poderia ficar com ele. Mal sabia el que Rule of Rose é, em sua essência, bem semelhante ao clássico da Konami, já debatido aqui no Freakview. No começo, demorei a entender sobre o que o jogo se tratava, cheguei na metade e deixei o título de lado. Em minha cabeça, era porque o jogo era arrastado demais, até mesmo para um amante do gênero como eu, mas a verdade é que Rule of Rose tocava em assuntos experienciados em primeira mão não só por mim, mas como por grande parte da população mundial.

Rule of Rose se tornou um título cult entre as massas em fóruns online, mesmo com suas mecânicas travadas e combate pouco preciso, visto como uma sequência da série Clock Tower, como um “quinto” título. Porém, pouco disso importa, pois o objetivo principal era escrever uma carta aberta a todos aqueles que podem ver um pouco de si refletidos na jovem Jennifer, aqueles que já foram vítimas de injustiças, isolamento, bullying ou perseguição durante a vida. Uma verdadeira joia de horror psicológica menosprezada, lapidada com carinho e dedicação por parte do time responsável pela sua criação e com uma forte e emocionante mensagem por trás da inocente imagem que carrega consigo.

Imagem do Freakview de Rule of rose

Mon coeur qui bat…

Le prince qui est tombé du ciel

Rule of Rose aborda diferentes temas, no entanto todos circundam os mesmo pontos: controle, política, corrupção e abuso. Na obra, controlamos a jovem Jennifer, em viagem ao antigo orfanato Jardim das Rosas – Rose Garden Orphanage – em busca de respostas às lacunas em branco em sua memória, acreditando que voltar ao local irá ajuda-lá a se lembrar. Durante o percurso do ônibus escolar pela escura noite inglesa, ela é abordada por um garotinho, que pede para que Jennifer leia um livro para ele. Ao entrega-lá o livro, ela nota que o mesmo se encontra em branco, com apenas uma capa desenhada  de maneira infantil. Antes que possa perguntar o que está acontecendo, o menino dispara a correr no momento em que o ônibus para e Jennifer se vê obrigada a seguir o garoto pela escura trilha pela qual ele foge.

Para o observador atento, as roupas, a época na qual se passa e a maneira de agir e criaturas existentes no universo de Rule of Rose, se assemelham fortemente a um conto de fadas, o que é exatamente o que os desenvolvedores desejavam. O jogo conta com diversas inspirações vindas de contos originais dos irmãos Grimm e Alice no Pais das Maravilhas e isso pode ser visto no livro que é entregue a Jennifer pelo garoto. O livro conta os capítulos do jogo em forma de prosa infantil, cabendo a Jennifer encontrar as páginas e completar a história. Mas… qual história?

A dela, é óbvio. Jennifer sofre de um bloqueio seletivo de memória, devido aos terríveis anos vividos no orfanato, agora ela precisa enfrentar versões grotescamente transmutadas de seu passado para poder fazer as pazes com o que aconteceu, mas terá de enfrentar um mundo fantasticamente tresloucado para isso.

Imagem do Freakview

A Princesa solitária em busca de seu príncipe.

Ao seguir pela escura trilha, Jennifer se depara com os portões do orfanato, onde vê os atuais habitantes do local, crianças com sacos de papel na cabeça espancando algo preso em um saco de pano. Nosso primeiro instinto ao nos depararmos com tal cena é querer “meter o pé” do local e voltar, mas isso parece ser impossível, pois o jogo mostra logo no começo que aqui tudo possui olhos e orelhas atentos a todos os movimentos de Jennifer. E como a mesma já veio até aqui em busca de respostas, não é viável voltar agora, então seguimos adiante neste mundo de loucura.

Nesse primeiro capítulo, o jogo já permite que o jogador explore a área do orfanato, podendo “prever” alguns acontecimentos futuros e conhecer um pouco mais de Jennifer e os habitantes do local, isso até chegarmos a sala onde vemos um “trono” feito de cadeiras, onde encontramos o jovem garoto. Neste momento, somos apresentados à primeira grande ação de humilhação de Jennifer neste universo. Ao sair do orfanato, após o anúncio pelo interfone, ela se depara com um caixão enterrado. Ao desenterrá-lo e ver o saco de pano ensanguentado, que estava sendo espancado pelas crianças anteriormente, ela, como se tomada por uma dor extrema, cede de joelhos e chora amargamente.

Com isso, as crianças vêm até ela e a encharcam com água fria, em um ato de humilhação, riem dela, a insultam e, por fim, a empurram para dentro do caixão onde o saco se encontrava. O caixão é levado por jovens garotas até um novo local e é cerimonialmente pregado, mas não como uma sentença de morte, mas sim de maneira muito diferente, uma iniciação. Como em diversos círculos aristocráticos, estudantis ou grupos mais reservados, humilhações e abusos físicos e verbais como maneiras de iniciação e inclusão no grupo, acontecem os famosos trotes.

Imagem do Freakview

A inveja pode ser considerada algo romântico, até se tornar doentio.

Jennifer está sendo iniciada no chamado Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho – Red Crayon Aristocrat Club – uma versão deformada e deturpada das crianças do orfanato, em uma tentativa de replicar a sociedade adulta em suas brincadeiras. Jennifer é vista como uma “pedinte” aos olhos das crianças, ocupando a casta mais baixa do clube. Quando acorda novamente, ela se vê presa a uma pilastra do que parece ser um dirigível, a sala é suja, cheia de objetos quebrados e abandonados e, pelo visto, é o que podemos chamar de “quarto” de Jennifer e sua base de operações.

Neste momento, Jennifer está vivendo uma fusão entre acontecimentos passados antes, durante e depois do orfanato, em uma mistura de universos, afinal de contas este quarto é uma projeção da área de serviços do orfanato, onde roupas sujas e tralhas iam parar. Isolada e ostracizada do convívio com as outras crianças, Jennifer se via como algo de pouca importância e se ligou a este local. Um exemplo disso é o “Cavaleiro do Balde”, um manequim no qual salvamos o jogo e que parece interagir e falar com Jennifer. Ele é uma de suas poucas companhias neste ambiente solitário.

Ao continuarmos nossa exploração pela aeronave, encontramos mais e mais provas de que suas salas copiam as salas do orfanato. Rule of Rose faz isso propositalmente, deixando o jogador perdido inicialmente e pouco a pouco o conduz e introduz a suas mecânicas e segredos sobre o que realmente está acontecendo. Tudo isso é feito para que o jogador siga os passos de Jennifer, pois, se você está se sentindo confuso, perdido e com medo, bom, ela também está.

Imagem do Freakview

As alusões aqui são mais misturas da falta de memória de Jennifer do que algo como em Silent Hill 2.

Entretano, mesmo assim, com o passar do tempo é possível notar os pontos feitos neste tecido e como esta linha que os une puxa tudo para uma linha de eventos principais, tal quais afluentes de um rio se unem em direção ao oceano. Rule of Rose distribui essas dicas de maneira coesa através do gameplay, contando com a curiosidade do jogador em explorar os cantos da aeronave, descobrindo pista após pista e formando uma imagem mental dos acontecimentos, dando forma a figura final, pessoas, objetos, salas e soluções para os mistérios.

E, com isso, a inocente brincadeira de fingir ser gente grande do Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho se mostra mais sombria e cruel do que se pode esperar. Ao mergulharmos de maneira mais profunda no jogo, descobrimos mais e mais sobre os maus tratos e sadismo dos membros do clube para com as outras crianças ou membros de casta inferior. Jennifer é o alvo principal, mas ela pode contar com a ajuda de Brown, um cão que encontramos mais tarde à bordo da aeronave e que se torna nosso companheiro inseparável, que nos ajuda em combates, busca de itens e puzzles, um companheiro “bom pra cachorro.”

Brown e seu fiel focinho se mostram como membros pivotantes do gameplay, ajudando e guiando Jennifer de maneira totalmente altruísta pelo mundo deturpado do jogo. Não porque estar com ela pode garantir algo de bom para ele no futuro, mas sim porque ele precisa dela, tanto quanto ela precisa dele, para poder sobreviver às torturas do Clube. Brown é como um anjo da guarda para Jennifer e a protege e guia até o final, um oásis no deserto de tristezas que os jogadores e Jennifer enfrentam e servindo como um reflexo para o verdadeiro antagonista do jogo.

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Do lixo ao luxo, um passo por vez.

O tirano sempre encontra pretextos para suas ações

Tudo isso é carregado através do jogo, pois já era algo pensado pela equipe, pois já pretendiam usar o elemento como uma âncora emocional para os jogadores. O objetivo era fazer com que nós engolíssemos isca e anzol, para que, quando menos esperássemos, sermos puxados para fora d’água com o famoso “chute aos indefesos” (se bem que Rule of Rose faz bem mais do que chutar). E, com isso, Jennifer e Brown constantemente se vêem involuntariamente procurando pelos “tributos” que são escolhidos e devem ser pagos ao final de todos mês para o líder do Clube.

Através desta dinâmica vemos que existem provas que apontam para algo além de uma brincadeira, tendo em vista que o não pagamento deste tributo inflige penas e punições para os infratores. Em nome de nossa sanidade e segurança, entramos no compasso da valsa da “nobre” burguesia que comanda o show. Porém, logo vemos que, como Benny nos diz no início de Fallout: New Vegaso  jogo está manipulado desde o inicio. Durante sua busca pela aeronave, Jennifer é constantemente assediada e maltratada pelas crianças, que atrapalham suas buscas e fazem comentários maldosos tanto em sua frente ou pelas costas, tramando contra ela.

Neste momento, começamos a encontrar os Imps, pequenas criaturas descalças, com feições semelhantes ao homônimo quadro de Edvard Munch, O Grito. Eles vestem roupas antigas de crianças e, na maioria das vezes, aparecem carregando uma vassoura. Os Imps representam a maneira como Jennifer se sentia durante sua infância no Jardim das Rosas, a maneira como se sentia como “lixo” que precisava ser varrido e como se sentia feia pelos comentários maldosos das outras crianças. Tanto eles quanto as outras criaturas são maneiras abstratas de representar como Jennifer e sua mente fragmentada têm de trazer suas memórias à tona, uma amálgama do que ela acreditava ser, com o que realmente era.

Uma vez que entregamos nosso presente tributário aos membros do clube, vemos que, mesmo assim, as garotas impetuosamente viram as regras contra Jennifer, apenas pelo prazer de abusar e torturar a protagonista. Porém, é tudo uma “brincadeira”, um jogo de faz de conta de ser gente grande. Ao olho atento, logo percebemos que, nesse dirigível onde a tirania reina, não são os adultos quem mantêm o controle.

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Pequena Wendy, sempre tão perdida.

Em comparação a criaturas de outros jogos do gênero, os monstros de Rule of Rose não são tão amedrontadores ou imediatamente chocantes, pois este não é o objetivo da obra. Rule of Rose utiliza o medo em bases fundamentalmente realistas, ao expor o jogador a um grupo de crianças que fingem ser adultas como antagonistas. Elas não possuem poderes sobrenaturais ou truques do gênero, mas sim uma arma com a qual todos que jogam, vêem ou estão lendo aqui e agora já sofreram, utilizaram ou presenciaram. Esta arma é o bullying.

Bullying é a prática de atos violentos, intencionais e repetidos, contra uma pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às vítimas. Ou, trocando por miúdos, um desequilíbrio de poder criado, manipulado e tirado proveito por uma pessoa ou um grupo em relação a uma classe ou individuo indefeso. Insultos, apelidos humilhantes, gritos, socos, pontapés, roubo ou destruição de propriedade, marginalização, exclusão, falsa acusação, abuso sexual e até estupro são apenas alguns dos vários tipos de maus tratos que uma pessoa pode infligir, sofrer ou observar.

Infelizmente, padrões de violência como estes são comuns em lares, empresas e diversas instituições, como o orfanato Jardim das Rosas. Um orfanato isolado como este, ainda mais na década de 30, é um ambiente mais do que ideal para fermentar tais atos repulsivos. E nós jogadores somos plateia, vítima e carrasco durante o percurso do jogo, que nos pega pela mão e nos faz assistir, sentir e quem sabe, talvez lembrar do que passamos, ou infligimos em alguém durante nossa infância, ou juventude. Para mim pessoalmente, Rule of Rose foi horrível, afinal de contas eu me vi em ambos os lados da moeda, pois na infância fui vítima de bullying em casa e escola porém, com o passar do tempo ganhei altura e força e me tornei promotor e juiz da minha própria justiça, algo de que me arrependo até os dias de hoje.

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Joshua, o garoto do livro.

Voltando a Rule of Rose, o Jardim das Rosas é o ambiente ideal para expansão de um sistema hierarquicamente opressivo. Novos estudantes não podem escolher não participar do jogo e automaticamente são designados a castas mais baixas e taxativas em relação à alta classe. Sofrendo e pagando o preço da tirania imposta pelo Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho, obediência e conformidade são obrigatórios. E, através dessa imposição, o bullying une aqueles que se encontram acima do limite do poder, ou seja a “aristocracia” eleita pelo Clube. Nesse microverso, ou você joga, ou enfrenta o exílio e ostracismo.

No meu texto especulativo de Death Stranding, falei sobre “Bob”, o Homo Erectus que, pelo fato de não poder se comunicar como nós Homo Sapiens, encontrou seu fim. Humanos são criaturas sociais e em nome de nossa sobrevivência, caso seja necessário, muitas vezes as pessoas irão permitir ou fingir ignorância dos fatos para poder proteger a sua própria pele. Através disso, muitos que se encontram apenas como observadores acabam se juntando ao grupo de maior poder, o famoso ato que vemos tanto em nossa política, mais conhecido como bode expiatório.

Para aqueles que não conhecem o significado do termo, surgiu a partir de uma antiga cerimônia onde as pessoas contariam seus pecados a um bode que, em seguida, seria sacrificado, carregando consigo os pecados a si confiados. Atribuir a culpa a um indivíduo ou grupo inferior em ordem de desmoralizá-lo e enfraquecê-lo através das calúnias e culpa de atos cometidos por outros é o princípio básico da coisa e Rule of Rose mostra isso abertamente. A linha de poder é dividida entre a alta classe – Wendy, Diana, Eleanor e Meg – e a classe baixa – Jennifer e Amanda – mostrando uma grande cisão nesta frágil e manipuladora sociedade instituída pelas crianças.

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Martha, ela tentou ajudar as crianças, infelizmente não conseguiu nada com isso.

As regras e leis do clube são feitas justamente para que possam ser articuladas ou abrir brechas para novas vertentes a fim de satisfazer as vontades dos membros da alta-classe em relação aos membros inferiores. Afinal de contas, bullys sempre se sentem justificados em suas ações. Essas são as leis, escritas e moldadas por aqueles no poder e um dos pontos centrais, tanto que o título do jogo é Rule of Rose. E a lei aqui, como na vida real, não precisa necessariamente ser justa, apenas ser confirmada e aceita por um numero de iguais no poder para se tornar real, algo comum de se ver no nosso mundo, em que inúmeros pagam pelos crimes cometidos por outros. Uma vez que aqueles acima da linha de poder concordarem que aquela pessoa abaixo da linha é “culpada”, automaticamente se torna “verdade” e as garotas utilizam isso frequentemente contra Jennifer, quando a acusam de ser suja, de mentirosa ou ladra.

Algo como uma mentalidade coletiva se forma e o grupo acusa um terceiro para “andar na prancha” e receber a punição, independente de ser culpado ou não, pois a pressão social é maior que a força moral. Cria-se assim um sentimento de inocência ao se “seguir a maré”, pois bullying manipula os observadores à cumplicidade, como quando você e algum amigo estavam brigando contra um garoto indefeso, ou quando deixou aquele seu amigo se aproveitar daquela garota bebaça na festa, ou talvez quando roubaram algo e se sentiram como os maiorais. Coisas de jovens, certo? Talvez, porém a semente da ideia, uma vez plantada, há de criar raízes cada vez mais profundas.

O maior exemplo disso em Rule of Rose pode ser visto em Amanda. A jovem assustada e emocionalmente frágil sofre um grande impacto quando Jennifer se junta ao Clube. Amanda é classificada como “Pobre” pelo clube, enquanto Jennifer é vista como “Pedinte”, ocupando o rank mais baixo da hierarquia. E agora Jennifer irá sofrer os abusos que antes eram direcionados a Amanda e a jovem garota demonstra que mesmo estando subindo a escada social, ainda assim teme pelo fato de estar abaixo da linha de poder e sabe que não pode confiar em seus “semelhantes”. Ao final do primeiro dia a bordo do dirigível, Diana diz para Jennifer que a mesma é uma desgraça e que seu presente é inválido e por isso a mesma deve ser punida. E quem melhor para executar a sentença do que a mais nova quase burguesa? Neste momento vemos Amanda totalmente aterrorizada ao pensar que terá de punir Jennifer com um rato, porém o medo daqueles acima da linha de poder é maior e então ela cede à tortura e faz o que tem de fazer.

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Diana, uma jovem inciada de maneira errada na vida adulta.

Quando estava na escola, muitas vezes deixava de participar das “brincadeiras” por seguir minha bússola moral – algo que seria jogado pela janela em anos futuros e só reencontrado anos depois – e, por causa disso, me tornava alvo justamente daquilo do qual não queria participar no inicio. Aqui, vemos essa reviravolta justamente quando Jennifer é designada para torturar Amanda, o que ela faz sem objeção ou titubear, fazendo com que Amanda seja rebaixada novamente e perca seu lugar para Jennifer na escada social. Jennifer apenas seguiu as leis do grupo e o fato de descer uma vez mais ao fundo do poço colocou Amanda em uma espiral de ódio e rancor, fazendo com que a mesma nutrisse um ódio doentio por Jennifer. Ao utilizarem Jennifer para rebaixar Amanda e humilha-la, a burguesia expiou seus pecados e ações através de Jennifer.

A partir deste momento, Amanda começa a espalhar boatos e mentiras sobre Jennifer e está sempre maquinando contra a protagonista. O que é mais aterrorizante neste cenário é a veracidade do mesmo: todo poder é capaz de corromper até mesmo os mais honestos e bem intencionados. Bullying é algo capaz de virar aqueles que apenas observam contra aqueles que se vêem sendo julgados e sentenciados, através dessa doença mental coletiva, em que a corrupção é o centro do problema. Com o passar do tempo, passamos a odiar Amanda e a temê-la, porém o jogo nos aponta o dedo e mostra nossa hipocrisia, pois na realidade fizemos o mesmo que ela e essa mudança toda se deu por este fato, com atos infligidos pela burguesia através do jogador.

Se não tem rosas, que plantem ervas daninhas!

De começo, realmente parece um jogo tirano de crianças, mas, ao repararmos de maneira mais analítica, podemos ver que as regras utilizadas e a maneira como as crianças agem, imitando os adultos para se sentirem chiques ou maduros, abrem espaço para inúmeras insinuações. A forma como o Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho age reflete de maneira semelhante a escada social de sua época. Se compararmos o quadro de poder exibido por eles durante o jogo, podemos ver uma gritante semelhança com a piramide social Marxista, e não, isso não é uma propaganda de esquerda.

Rule of Rose é uma parodia do sistema político mundial, está em sua escrita, no design das personagens, no mundo do jogo, sua fotografia e até mesmo na época em que se passa. Como dito anteriormente,  o jogo se passa em 1930, mais precisamente no Reino Unido, o qual estava passando por um conflito interno brutal entre movimentos de esquerda e direita. Durante o jogo, podemos ver que o Clube dos Aristocratas do Giz vermelho constantemente utiliza denominações marxistas para nomear seus ranks e posições na balança de poder, títulos como princesa, príncipe, duquesa, condessa, baronesa, burguesia, pobres e pedintes. Enquanto isso, uma forte linha delimita e separa os grupos da alta classe, a burguesia, dos pobres e pedintes, o proletariado.

Através disso, vemos que a alta classe pouco faz para contribuir com este sistema, mas utiliza a classe baixa para realizar suas tarefas e a explora em busca de bens. Os impostos vistos como os presentes mensais que devem ser pagos pelos membros do proletariado são religiosamente marcados por Meg – conhecida como “A Princesa Sabe Tudo”, que anota tudo em seu caderno, lembrando muito um tabelião, anotando os pagamentos daqueles explorados pelo desequilíbrio de poder.

Imagem do Freakview

Cordas são usadas frequentemente, como símbolos de “sufocamento” durante o jogo.

Por conta deste sistema, a classe baixa deve sofrer em busca de apaziguar a alta-classe com os presentes, que pouco valem para eles, a fim  de evitar punições “legais” pela não colaboração com o mecanismo operante. Outro grande exemplo disso é a falsa meritocracia existente em Rule of Rose, algo comum em sistemas políticos tiranos, a propagação da ideia de que apenas trabalhar o suficiente irá lhe garantir uma alta posição social no futuro. Um ponto interessante é o título de Amanda, Princesa dos Trapos, se traduzido diretamente, uma alusão ao antigo ditado “do lixo ao luxo”. Isso pode ser visto quando encontramos seu diário, onde Amanda descreve como seu ódio por Jennifer e como suas maquinações irão elevá-lá a um novo patamar social, quando deixará de pertencer à plebe e se tornará uma burguesa, independendo do preço.

Porém, sabemos que não é assim que o sistema foi feito para funcionar. Alguém somente consegue tal mudança através da exploração ou falha de outros, a distribuição de uma grande quantia de bens ou poderes vem da falha e opressão de diversas pessoas abaixo da linha de poder. Afinal de contas, se todos subissem de patamar instantaneamente não seria lucrativo e a linha de poder logo deixaria de existir. Essa linha divisória é presente e relembrada constantemente durante Rule of Rose, Amanda e Jennifer são o proletariado explorado, mas sempre com a promessa de que o futuro de riquezas as aguarda.

Quando Jennifer tortura Amanda com o rato na vara, automaticamente Jennifer é colocada um nível acima de Amanda, que é posta como miserável no rank do clube, ou seja, o avanço de Jennifer só é feito através do ato de oprimir e torturar Amanda. Percebemos que a batalha entre degraus sociais ocorre apenas entre os membros mais baixos da casta, já que os ocupantes dos cargos mais altos não descem ou sobem no nível de poder e apenas assistem ao espetáculo por eles orquestrados ao longe. Essa distribuição artificial de poder serve para alimentar a dinâmica de bullying incentivada pelos membros do clube de aristocratas, guiados pela jovem princesa Wendy. Tudo isso em prol de distrair as classes mais baixas em disputas entre si, ao invés de buscarem resoluções com aqueles no topo da classe social, que fabricaram esse universo de poder fictício que “funciona” pois assim acreditamos. Este é o controle através do medo de nunca “ir” para a frente na vida.

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A queda da Bastilha, a maior força dos tiranos.

Todos os grandes ditadores e tiranos da história humana utilizaram o medo para controlar grandes massas. A estratégia funciona, pois o medo e coerção se espalham mais rapidamente do que compaixão e empatia pelo próximo. Então, qual é a saída deste círculo vicioso? A resposta nos é dada na versão original da suposta frase dita por Maria Antonieta, recriada de maneira magistral em Rule of Rose.

Jennifer sofre e obedece aos caprichos do clube dos aristocratas, mas Jennifer possui Brown para poder se confortar e encontrar refúgio nas horas mais escuras. Porém, durante o jogo, também conhecemos Wendy, que sempre surge como uma luz no fim do túnel, tratando Jennifer de maneira carinhosa e amigável, inclusive se referindo a ela como seu “príncipe”. No entanto, Wendy é a líder do Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho, algo que só descobrimos mais para frente no jogo e, como na vida real, aqueles em posições de poder sempre tendem a desejar sempre mais e mais, até o momento em que dão um passo mais largo que a própria perna. Mais na frente chegaremos neste ponto, mas Wendy ultrapassa os limites em determinado ponto e neste momento Jennifer finalmente se levanta contra a burguesia.

Talvez seja sorte, talvez seja pensado, porém, neste momento da história, Jennifer caminha até Wendy e lhe golpeia a cara, a fotografia do momento remete às cores da bandeira francesa, responsável por um dos conflitos revolucionários mais famosos da história: La Révolution française ou La Revolution Du Peuple. Com Wendy caída em choque, Jennifer agora no topo a golpeia sem parar, entregando de volta todo seu ódio e frustração por ter aguentado e participado deste doentio jogo de faz de conta, enquanto a burguesia assiste horrorizada e imóvel a terrível queda de seu regente e do seu pequeno sistema que acreditavam ser tão impenetrável e impecável. Toda revolução ocorre quando a população chega a um ponto de comoção geral em que é necessário derrubar o poder regente atual em busca de nova guia.

Ao dar esse passo maior que sua perna, Wendy rompeu o limite de abusos ao qual Jennifer se sentia “confortável” em obedecer e com isso acordou a chama para uma revolta. E, com apenas um movimento brutal, explosivo e selvagem, Jennifer foi em busca direta do regente do grupo no poder: Wendy. Esse momento fez com que automaticamente todo o sistema entrasse em colapso. Agora, com a falta de um regente forte o suficiente para manter essa casca vazia, essa imitação de um Estado ou sistema realmente fundado em bases funcionais, o vácuo de poder exige que Jennifer se torne a nova Princesa regente, algo que ela recusa no mesmo instante.

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Com o avanço no jogo, cada vez mais o vestido de Jennifer se mostra riscado de Giz.

Imitamos os adultos, onde foi que erramos?

Algo que me ligou diretamente a Rule of Rose, quando joguei-o novamente para este artigo, foi o capítulo “White Mamba” de Metal Gear Solid V: The Phantom Pain. Neste capítulo, vemos uma inspiração direta no livro de William Golding, “O Senhor das Moscas”. Neste livro, William narra a vida de um grupo de jovens garotos, tentando sobreviver em uma ilha paradisíaca, com comida,  água potável e tudo o que necessitavam. Ainda assim, os garotos se dividem em grupos ao tentarem se governar, gerando grupos totalitários e conflitos desnecessários. Porém, o livro omite em mostrar algo que Rule of Rose escancara para o espectador: a dinâmica do abuso de poder pode e irá surgir de qualquer lugar.

Isso é visto diretamente na maneira como Sr. Hoffman utiliza de sua autoridade como guardião das crianças para abusar física e psicologicamente delas, fazendo com que suas visões sobre a sociedade, comportamentos e valores sejam todos deturpados. E, no final, Mr.Hoffman é a raiz de todo esse mal causado pelo Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho. Mr.Hoffman é um antigo professor, antes visto com carinho pelos seus alunos, que agora é temido pelos órfãos que com ele vivem, pois temem os terrores físicos, psicológicos. Para Clara e Diane, as aguardam os terrores que um velho homem solitário pode saciar com seus jovens corpos femininos.

Mr. Hoffman coordena o orfanato de maneira rigorosa e trata “suas” crianças com punhos de ferro. Ele possui uma chamada especial que faz todos os dias nos alto-falantes do orfanato, começando sempre pelos favoritos e terminando com Jennifer, por quem sente um asco terrível. Para muitos, rigidez é algo necessário para que uma criança cresça com um senso moral forte e realmente justo, mas isso só funciona caso seja nutrido em um ambiente igualitário e benevolente, algo que raramente acontece. Hoffman prova pensar ao contrário, ao aplicar dois pesos e duas medidas, agindo com favoritismo para com os membros do clube de aristocratas, o que permite que eles justifiquem suas ações contra Jennifer e Amanda e com isso chegamos também a um novo ponto de abuso, o abuso sexual de menores.

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Até onde um homem vai para satisfazer seus desejos?

Hoffman sempre cita Diana como sua “Garota Preferida”. Nunca é mostrado de maneira explicita Hoffman cometendo o ato, mas, para o olho treinado, é evidente. Diana, durante sua apresentação para Jennifer, ergue sua saia de maneira exagerada durante o cumprimento e podemos ver faixas ao redor de suas coxas, como se estivesse escondendo marcas. O fato de ser um velho sob controle de diversas crianças e sua preferências por jovens facilita que Hoffman conduza o abuso e sacie seu doentio prazer. A maneira com que acaricia de maneira lenta e prazerosa a indefesa Diana mostra e confirma seu gosto por isso e, mais triste ainda, podemos ver isso refletido na jovem Clara.Clara era a favorita de Hoffman antes de Diana, a garota apelidada de maneira cruel como “Princesa Medrosa” era a vítima anterior de Hoffman. Sempre encontramos a mesma na sala de enfermaria acompanhada de Hoffman e, quando interagimos com ela, Clara está sempre calada e com pouco para falar, mas fica agitada quando tentamos mexer nas gavetas ou armários. Quando a vemos em outros lugares, vemos Hoffman fazendo com que a mesma se agache ou fique em posições “estranhas” enquanto ele fala lentamente, verdadeiras cenas de revirar o estômago. Essa situação iria parar com o tempo, já que Clara estava prestes a se tornar uma adolescente, algo que faria Hoffman se virar para Diana. Porém, um dia Clara desaparece ao entrar com Hoffman em um sala e só retorna como um boss, A Princesa Sereia.

Esse boss é Clara presa ao teto, agora com uma cauda de peixe e diversos cortes pelo corpo. O triste é que, após a derrotarmos, recebemos um item: a cauda da carpa Koi de Hoffman. Se pararmos para analisar o modelo de Clara durante a batalha, vemos que seu corpo está cheio de marcas de costuras e suas “guelras” são semelhantes a cortes nos pulsos feitos por navalhas. Através disso, podemos especular que Clara cometeu suicídio após anos de abusos físicos, mentais, emocionais e sexuais. As linhas de costuras podem ser resultantes de um aborto forçado ou uma cesária mal conduzida e os cortes em seus pulsos são “gritos de socorro” que jamais chegaram aos “ouvidos” de ninguém. Ao invés de a fazer respirar um novo ar, as “guelras” a levaram a se afogar em um mar de tristeza, sofrimento e abusos.

Imagem do Freakview

A unica saída de uma garota encurralada.

O mais triste em relação a isso é que Rule of Rose sabe bem onde está pisando e tem consciência de como a vida real age com esse tipo de abuso vindo de pessoas “bem quistas” com a sociedade. A cozinheira do orfanato, a senhorita Martha Carol, que, por incrível que pareça, também não dá folga para nessa amiga Jennifer, sabe dos abusos sexuais cometidos por Hoffman. Por diversas vezes, Martha enviou cartas às autoridades locais, denunciando os doentios atos cometidos por Hoffman com as jovens garotas e a resposta das mesmas era sempre igual: não há evidências o suficiente.Como em muitos casos reais, as autoridades mostraram pouco interesse em intervir, o que permitiu que Hoffman continuasse a explorar as jovens garotas. Esse cenário mostra que mesmo alguns dos aristocratas apenas expiam seus pecados, pois tem pecados expiados por eles por outros membros de níveis mais altos da real sociedade. Em alguns casos, o ditado é real, o bully realmente é ou foi uma vítima. Hoffman, ao abusar e transviar o pensamento das garotas, foi o ponto de partida do Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho, ao criar favoritismos e inseminar todo e qualquer tipo de abuso nas mentes e vidas das crianças que deveriam ver nele uma figura paterna e segura.

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Hoffman utiliza o sistema de som para abafar os gritos de Carla enquanto realiza o aborto.

Eu só a trato assim, pois eu a amo

Nós passamos por diversos tipos de abuso durante este texto e talvez algumas pessoas tenham parado, ou pulado pedaços por tocar em diversos assuntos pesados ou pessoais. Abusos de poder, familiar, emocional, físico e, infelizmente, até mesmo sexual. Agora, neste último trecho de Rule of Rose, falaremos do abuso de relacionamentos, mais precisamente da subversão de um sentimento puro e belo, para algo corrupto e aterrorizante para aqueles que o vivem. Focaremos naquela vista como a antagonista central de Rule of Rose, Wendy, a Princesa Solitária.

Wendy é vista de início como a melhor amiga de Jennifer e até mesmo um interesse amoroso, mas não de uma maneira sexual e sim mais de um amor romântico, puro e platônico, perfeito no mundo das ideias. A garota mais tarde é revelada como líder do Clube dos Aristocratas e mentora por trás de todas as maldades e abusos que ocorreram com Jennifer durante sua estadia no orfanato Jardim das Rosas. Porém, antes de pularmos para isso, vamos colocar sob a luz do holofote o passado de Jennifer de uma vez por todas e junto dela a história do Vira Lata e do Sr. Gregory M. Wilson.

No começo do texto, foi dito que o jogo se passa dentro de um dirigível a maior parte do tempo e, em poucas ocasiões, no orfanato por si só. Isso ocorre pois, em 1929, enquanto viajava com sua família em um luxuoso dirigível, ocorreu um acidente e Jennifer foi a única sobrevivente. Após isso, a menina foi acolhida por Gregory M. Wilson, que havia perdido seu filho recentemente, o jovem Joshua – o garoto que encontramos no começo do jogo no ônibus. Com isso, Gregory passa a cuidar de Jennifer. Porém, ele está em um profundo estado de negação e não consegue aceitar a morte de seu filho, então passa a vestir Jennifer com as roupas do garoto e a chamar de Joshua. Jennifer, agora com cabelos curtos e sempre trancada no porão da casa de Gregory, é resgatada por Wendy, que acredita que ela é mesmo um garoto.

Imagem do Freakview

As vezes é melhor não ter um pai, ou figura paterna por perto.

Uma vez livre de Gregory, Jennifer vive seus dias de maneira despreocupada ao lado de Wendy, sem saber que a mesma é a líder do clube ou dos abusos de Hoffman. Durante sua estadia no orfanato, no entanto, Jennifer encontra um filhote de cachorro, esse filhote viria a ser Brown, nosso companheiro durante o jogo, ou melhor, a imagem que a mente de Jennifer cria de Brown. Lembram que, durante a explicação sobre a “revolução” de Jennifer, tudo ocorreu pelas ações de Wendy? Wendy não gostava de Brown, pois Jennifer preferia a companhia de seu amigo canino do que a de Wendy ou dos membros do Clube dos Aristocratas do Giz Vermelho. Crianças com ciúmes precisam achar uma maneira de chamar atenção dos outros e assim fez Wendy, quando mandou que Diana, Meg e Eleanor matassem Brown espancado.

As crianças que Jennifer vê ao chegar ao orfanato, o caixão na qual é lançada e o saco ensanguentado, todos a levam de volta a este momento. O momento em que ela se libertou das amarras de Wendy e dessa falsa sociedade criada por todos. Wendy, após ser espancada por aquela que acreditava amar e controlar, foge do orfanato. Durante o jogo, quase nunca vemos os adultos e, em determinado momento, eles simplesmente desaparecem. Isso ocorre pois Wendy, após fugir do orfanato, vai até sua mais nova vítima de abusos, Gregory.

Desolado por Jennifer ter fugido, Gregory se afunda ainda mais em uma espiral de desespero e depressão, suicídio não sai de sua mente e ele anseia pelo doce beijo da morte. Wendy, no entanto, tem outros planos para ele. No orfanato, as crianças conhecem a lenda do Vira-Latas, um cão monstruoso que as devoraria caso se comportassem de maneira levada e Wendy está prestes a trazer o Vira Lata para este mundo. Vestindo as roupas de Joshua que estavam com Jennifer, Wendy surge para Gregory e o manipula e treina como se fosse um cão. Ela chega a prendê-lo com uma coleira e faz com que o adulto, sob o efeito do álcool, se degrade cada vez mais, tanto física, quanto mentalmente.

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Se eu não posso a ter, ninguém a terá.

Neste momento, Wendy está pronta para retornar ao orfanato Jardim das Rosas com seu novo “cão”. Essa relação serve como um espelho perturbador, refletindo Jennifer e Brown, já que Wendy, diferentemente de Jennifer, abusa de seu poder e autoridade e possui um “cão” maldito. Durante uma noite chuvosa de dezembro, Wendy libera o Vira Latas dentro do orfanato, Gregory mata todos os adultos e comete canibalismo com as crianças, incluindo Wendy. Neste momento, enfrentamos o último chefe do jogo. Caso matemos Gregory, recebemos o final ruim do jogo, em que Jennifer mata o Vira Latas e perde sua memória. Em contrapartida, no final bom, Gregory reconhece que Jennifer jamais fora seu filho e finalmente comete suicídio, ao recuperar sua arma.

Focando no relacionamento entre Jennifer e Wendy, pouco importa a forte insinuação de um amor lésbico entre as duas jovens garotas durante o percurso do jogo. Afinal o que Rule of Rose realmente deseja mostrar é o relacionamento abusivo de Wendy com Jennifer. Através de suas ações possessivas e invejosas sobre o que ela pode ou não fazer, algo que podemos ver ser utilizado por parceiros amorosos, amigos e familiares, ao tentar romar as rédeas de nossas vidas de nossas mãos e nos guiar de acordo com seus próprios desejos.

Nada puro ou singelo.

Wendy é uma jovem que em algum momento de sua infância foi abandonada no orfanato Jardim das Rosas, não sabemos se foi durante os primeiros anos de vida ou durante a infância, mas sabemos que isso a marcou profundamente. A falta de figuras fraternais e a falta de capacidade do diretor do Orfanato de agir como uma abriram ainda mais a ferida em seu coração. A sua frágil saúde exigia que ela ficasse dias e mais dias trancada no quarto sem poder sair e isso serviu apenas para fazer com que Wendy se sentisse cada vez mais isolada e amedrontada deste frio mundo do qual fazia parte.

Porém, ao encontrar Jennifer e desenvolver o que no inicio parecia uma relação saudável e verdadeiramente amorosa, tudo se mostrou apenas como o começo de uma espiral de abusos e torturas. Wendy usa pragmaticamente todas as ferramentas a sua disposição. Durante o percurso do jogo, podemos ver que as cordas são usadas como simbolismo para essas amarras criadas a partir dos abusos perpetuados pelos personagens do jogo. Quanto mais avançamos na história, mais os objetos e a própria aeronave se mostram amarrados por inúmeras cordas, representando esse sufocamento causado pela possessividade de Wendy em relação a sua amiga. Quando ela viu que Jennifer estava passando tempo demais com Brown, não conseguiu ver uma maneira de dividir a amada com o cão e sua possessividade e busca por controle absoluto fizeram com que Wendy começasse a maquinar contra Jennifer.

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Wendy, sempre tão…controladora.

Ao espalhar mentiras, boatos e tramar contra Jennifer com as crianças e adultos, ela foi aumentando ainda mais a distância de Jennifer com as pessoas dentro do orfanato Jardim das Rosas. Por outro lado, quando isso acontecia, Jennifer passava cada vez mais tempo com Brown, o que fazia com que Wendy aumentasse as maquinações, até o momento desesperador, que pediu medidas desesperadas. Wendy ordenou que o presente de um dos meses fosse Brown e as crianças mataram o cão, o último abrigo emocional de Jennifer. Desta forma, Wendy acreditou que iria controlar finalmente Jennifer, o que se mostrou o ponto de ruptura de todo o seu ciclo de abusos. Wendy via Jennifer quase como uma droga, depositando nela toda a felicidade de sua vida e ao fazer isso ela automaticamente via Jennifer como algo com o qual não poderia viver sem, algo que lhe pertencia, seu e de ninguém mais, muito menos de si própria.

Wendy representa o perfil clássico de abusadores, pessoas que não são capazes de ver o lado dos outros envolvidos nas situações e relações, pessoas que tomam quaisquer medidas necessárias para alcançar seus objetivos e que jamais duvidam de suas ações e acreditam que o resultado as justificam. Através disso, Wendy sufocou Jennifer com suas amarras e consequentemente todos no Jardim das Rosas ao liberar o Vira Latas dentro do orfanato, mostrando que, no final das relações abusivas, apenas os escombros e manchas restam e que é melhor os enterrar no fundo de nossas mentes, para nunca mais nos lembrarmos destes terríveis dias, horas e minutos de abusos.

Para aqueles que tiveram paciência de ler até o final, agradeço. Sei que é um tema um tanto quanto pessoal o texto, eu mesmo batalhei muito para poder escrevê-lo. Em determinado momento de minha vida passei de agredido para agressor, um caminho sem volta e que tenho de encarar todo os dias. Durante o dia a dia é difícil para vítimas de abusos, sejam eles quais forem, poderem sair de suas camas e seguirem seus dias como se nada estivesse acontecendo. Por isso, se você conhece alguém que sofre com abusos, ou sofreu, entenda quando eles disserem que determinadas situações não os deixam confortáveis, ou quando não querem fazer algo. Não é não e jamais irá significar outra coisa.