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Passados estão os dias em que as noites eram povoadas por terríveis monstros. Assim era antigamente, quando a penumbra cobria o mundo após o sol ir iluminar a outra face da Terra. O imaginário humano se libertava e fomentava a força das criaturas tenebrosas que nos espreitam das sombras. A Angry Demon Studio resolveu trazer um pouco mais dessas lendas milenares para a indústria dos jogos, resgatando e modificando o folclore sueco em seus dois jogos.

Tanto Apsulov: End of Gods quanto Unforgiving – A Northern Hymn trazem histórias que mostram que conhecimento é sempre mutável. Desta forma, nem mesmo nossos heróis serão sempre confiáveis. Não busque salvação ou confie no que conhecia até agora, afinal seus conhecimentos estão prestes a serem virados de cabeça para baixo.

Vale avisar que o texto conterá spoilers, então siga por sua própria escolha.

Sangue histórico

Os dois títulos da desenvolvedora sueca fazem um resgate interessante ao inserir tais elementos históricos em tempos atuais e futuristas. Em Apsulov, temos a jovem Alice despertando diante dos rostos petrificados de tanto os Aesir quanto dos Vanir, esperando que ela tomasse as rédeas de seu próprio destino enquanto vasculha o que sobrou de Midgard.

Já em Unforgiving, temos uma história de contínuo sofrimento pelas mãos de um ser místico, conhecido como Näcken. A entidade é algo semelhante a uma nixe alemã, mas em uma versão masculina, mais difundida na Suécia. Tocando seu harmonioso violino d’água, ele encanta mulheres e crianças para os lagos, onde ele as assiste se afogar e lutar em busca de ar. No entanto, as histórias variam e trazem Näckens que simplesmente se deleitavam da companhia de crianças, mulheres e até mesmo homens.

Imagem do Freakview sobre a Angry Demon Studio
Este dai é cabeça aberta!

Ambos os jogos inserem a cultura da tradição oral e antigos textos sobre o fantástico, estipulados pelos suecos de outrora. Entretanto, Apsulov traz uma visão mais voltada para a ficção científica, lembrando até mesmo um pouco do esquecido Too Human, para Xbox 360. Aqui, ao invés de controlarmos Baldur, um dos deuses Aesir, controlamos uma personificação de Hel, uma das filhas de Loki. Ela é uma Jotun, descendente de gigantes e rainha de Niflhein, o reino dos mortos na cultura nórdica.

Aqui Hel acorda como Alice e precisa descobrir os segredos sobre o que está ocorrendo em Midgard. Com o tempo, vamos vendo ainda mais da mitologia nórdica sendo derramada neste universo. A Angry Demon Studio implementou itens, referências e mudanças bem vindas à mitologia neste título, com Unforgiving vindo logo atrás com sua visão mais voltada para o terror psicológico e lendas antigas.

Não acredite nas mentiras do pai.

Memórias das raízes da Yggdrasil

O grande plano dos deuses e mortos começa a se fundir em Midgard, com a descoberta do Apsulov. O artefato é uma enorme estátua que está interferindo diretamente com os nove reinos e é considerado a última grande relíquia dos Deuses.

Estes Deuses, de acordo com as palavras de Dr. Henrik Andersson, sequer passam perto de se assemelhar à visão heroica que temos dos mesmos. Um dos exemplos mais pungentes é a aparência alienígena que Loki apresenta durante o jogo. Com seus longos braços e pele semelhante à textura de plantas, o deus das mentiras traz uma forma que remete aos Ent, de Tolkien. O lendário Mjöllnir também faz presença no mundo de Apsulov, mas, ao invés da muito menor e simples versão da Marvel, aqui vemos a arma de Thor em toda sua bélica glória: uma arma feita para matar gigantes, sem dúvida alguma.

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A cada golpe em sua bigorna, raios se dispersam entre as nuvens e acovardam os corações dos homens.

Em Unforgiving, por outro lado, temos uma luta eterna em vão, sempre repetindo o mesmo ciclo de sofrimento. A trama é algo retirado diretamente de uma noite de amor entre contos nórdicos e gregos, uma mistura dos mitos de Sísifo e Näcken, enquanto acompanhamos o sofrimento em constante repetição da jovem Linn e seu irmão Lukas. Eles são atormentados por criaturas do folclore escandinavo enquanto buscam a saída de uma densa e escura floresta.

Nesse ambiente hostil, Linn, após ver a morte de seu irmão, irá se deparar e sobreviver contra os ataques de inúmeras criaturas. Entre as bestas temos um gigante (Jotun) de um braço só, uma Skogsrå, Trolls e o já dito Näcken. Trata-se de um eterno loop, no qual a jovem acredita ter descoberto a saída do terrível pesadelo apenas para despertar uma vez mais ao fundo do carro de seu irmão, que a está levando para um centro de reabilitação.

Talvez essa tenha sido a última história lida por esta família, antes da mesma se tornar realidade.

Claro que qualquer empresa poderia ter feito o que a Angry Dedmon Studio fez. Entretanto, o fato de todo esse contexto ser algo pertinente ao dia a dia deles e moldagem da cultura local e de seu passado torna tudo ainda mais rico. Vemos que os dois trabalhos fogem de clichês criados pela mídia e cultura pop para as criaturas que podem ter aparecido em outras versões e formatos.

Tomando uma dose com Mimir e o Angry Demon Studio

Um grande exemplo de como o material lúdico foi bem explorado está em Apsulov. Geralmente, quando algum jogo vai se retratar a alguma arma nórdica ou item da mesma mitologia, sempre temos os mesmos: Mjöllnir e Gungnir são cartas marcadas. Além desses,  os únicos outros itens do imaginários nórdico que me lembro até hoje de ter visto foram megingjörð – o cinto da força de Thor – em Castlevania Lament of Innocence e Curse of Darknes – e a mística lâmina Gramr, lâmina da vitória e fúria, presente em Hellblade: Senua’s Sacrifice (e na forma de Balmung em Cavaleiros do Zodíaco: Asgard).

Já em Apsulov temos o último dos itens fantásticos do deus do trovão a voltar a aparecer na mídia. Assim como os anteriores, a luva Járngreipr é um dos equipamentos mais importantes de Thor. Forjada por Brokkr junto de seu martelo, a luva (que tem seu nome traduzido como Pegada de Ferro) permite que Thor utilize o martelo e todas suas propriedades sem temor.

Se você consegue vê-lo, ele pode te sentir.

Já em Apsulov, a Angry Demon Studio transformou a manopla em algo útil para Alice. No entanto, ela funciona de maneira bem diferente, uma vez que para ela a Járngreipr se torna uma prótese. Com esta nova forma futurista, a prótese consegue acumular energia mística provida por Mjöllnir. O martelo, por sua vez,  serve como a fonte de energia para toda a instalação da Borr Corp., responsável por todo o caos e estudo referente aos deuses, Yggdrasil e as criaturas que antigamente se acreditavam ser lendas.

Entretanto, esta não é a única adaptação feita no rico folclore nórdico e todas as criaturas em Apsulov são totalmente diferentes do que se pode esperar ver do que já conhecemos sobre elas.

Os salões vazios de Valhalla

Apsulov não é somente uma estátua, mas é na realidade a atual prisão de Loki neste universo. Assim como sempre, o astuto deus das trapaças usou a voz da então falecida esposa de Dr. Henrik para seus propósitos, sem que o cientista sequer soubesse que ela já havia perecido entre as raízes da Yggdrasil e as muitas criaturas. Alice e Henrik acabam caindo nas mentiras de Loki, que os incita a recuperar os nove crânios que servem como chaves para o Apsulov.

Imagem do Freakview sobre a Angry Demon Studio
Em busca da harpa dourada de Freya.

Os dois acreditavam que estas chaves serviriam para impedir a fusão dos nove reinos, mas eram a tranca do Apsulov. O deus da trapaça estava preso no Apsulov pela morte do deus Baldur e condenado a sofrer as queimaduras do veneno que pingava e desmanchava sua pele para todo sempre. Para evitar que, no caso de sua fuga, Loki continuasse a enganar os outros, uma máscara fora infundida em seu rosto. Desta forma, ainda que se transformasse, Loki seria facilmente reconhecido.

A Angry Demon Studio resgata um Loki diferente da sua versão dos contos, quadrinhos e filmes. Ele é uma criatura esguia, semelhante a um Ent, com a pele apodrecida devido ao veneno da serpente e uma máscara unida a carne de sua face. Até mesmo sua forma final é bizarra, semelhante a uma árvore e trazendo fragmento de todos seus filhos: um lobo, um cavalo, uma serpente e uma parte humanoide. Sem mencionar uma gigante bocarra que esconde sua cabeça.

Imagem do Freakview sobre a Angry Demon Studio
Fimbulwinter is coming.

Hel e Fenrir são os dois únicos descendentes de Loki que aparecem no jogo. Hel/Alice não conhece suas raízes divinas ou passado, conhecendo e descobrindo tudo durante sua jornada. Já Fenrir, por outro lado, é bem diferente, após ter sido recriado em laboratório, usando o material orgânico da verdadeira fera. Diferente da sua forma prévia, Fenrir em Apsulov é um lobo desforme, com extensões e membros onde eles não deveriam estar, além de apresentar uma cabeçada dividida em duas, ambas deformadas.

Fenrir luta em prol da sobrevivência de Hel, além de odiar seu pai Loki. A fera sabe que Loki deseja a queda de Alice para poder reinar sobre o novo mundo formado pela junção dos nove reinos da Yggdrasil. Aposto que Fenrir adoraria mil vezes mais estar preso novamente a Gleipnir, do que viver está vida. Gleipnir não está presente no jogo infelizmente, afinal a corda mística que fora forjada pelos anões é um dos mais belos itens da mitologia nórdica. Sendo criada de coisas impossíveis, sendo assim indestrutível, mesmo para a força profana de Fenrir. Gleipnir era formada pelo som do cair de um gato, a barba de uma mulher, a semente de uma montanha, tendões de um urso, o folego de um peixe e o cuspe de um pássaro.

Imagem do Freakview sobre a Angry Demon Studio
Com um pai destes, quem precisa de inimigo?

Já Unforgiving traz uma releitura mais fantasiosa e menos científica para as suas criaturas. Todas parecem ter saído diretamente de um livro de contos infantis, nos quais as criaturas realmente espreitam através dos galhos. Uma fantasia que infelizmente a jovem Linn irá repetir até que o Nykr resolva libertá-la de sua continua prisão, na qual ela sempre terá de ver seu irmão morrer repetidas vezes e falhar repetidas vezes para escapar deste local.

A Angry Demon Studio se superou em ambos os jogos ao incorporar narrativas modernas nos dois. Tanto Apsulov: End of Gods quanto Unforgiving: A Northern Hymn são duas excelentes obras de horror, mergulhando fundo no cerne de seu folclore. Espero que outros desenvolvedores, principalmente nacionais, possam tomar estes dois jogos como exemplo e desenvolver um jogo de horror nacional com uma qualidade tão boa quanto estes exemplos.