As luzes que indicam o desligamento iminente do sistema pisca no canto da HUD. Mesmo alterando as designações de comando, o desligamento é inevitável, uma vez que a bateria em si está toda detonada. Uma bala é disparada e voa em direção ao dispositivo, que se abre feito uma fruta podre, em uma mistura de miolos, fios, sangue, e alguns componentes eletrônicos. Bem vindo ao universo Cyberpunk.
Antes era imaginado agora é visível em Cyberpunk 2077, dividindo águas entre os “passadores de pano” e os revoltosos que já estão condenando a empresa à morte. Estariam eles dispostos a mergulhar fundo no gênero ou a briga é por menos? Afinal de contas, o enxame de jogadores se deu mais por conta de todo o mistério e estratosférico hype gerado pela empresa polonesa. Mas a verdade é que as ruas de Night City são lavadas de sangue desde 88. E eu mesmo venho arrancando cabeças e cortando braços desde 2013, através dos fóruns da internet e suas mesas virtuais.
Balling like Godzilla
Primeiro foi Julian Manki, um assassino militar Spartacus, e a outra e mais longínqua foi Yukiko, uma gueixa assassina. Joguei ambas as sessões nos antigos sites que hoje viriam ser o Rpgnet, e por lá tive contato com meus primeiros dias dentro do universo de Night City. Mas o que é cyberpunk? É um gênero que evoca a mensagem “High tech, Low life” em sua premissa. Um futuro totalmente distópico, onde assassinatos e crimes ocorrem à luz do dia e corporações têm mais poder do que nações.
A literatura cyberpunk é usada constantemente como uma metáfora para as preocupações atuais sobre os efeitos e o controle das grandes corporações sobre as pessoas, a corrupção nos governos, a alienação e a vigilância tecnológica. Com seus “pichadores virtuais”, como citado em Neuromancer, muitas vezes as cidades do universo cyberpunk são assim. Inundadas de luzes neon, mortes, crimes, drogas e prostituição, fora o poderio corporativo insano.
O estilo cyberpunk descreve o lado niilista e underground da sociedade digital que se desenvolveu a partir das últimas duas décadas do século XX. É um lugar sinistro, sombrio, onde a rede digital domina todos os aspectos da vida cotidiana. Empresas gigantes substituíram o Estado como centros de poder. A batalha dos excluídos contra o sistema totalitário é sempre recorrente nas obras do gênero.
Upload da mente
Além dos romances literários, o gênero cyberpunk já fora muito explorado em filmes, sistemas de RPG, board games e jogos eletrônicos. Só para citar alguns famosos, temos Shadowrun, System Shock, Snatcher e Blade Runner. O gênero é extremamente rico e traz a cada novo título novas ideias mesmo que incorporando características já manjadas.
O gênero realmente viria a cair na graça do público com a chegada deste mundo nos cinemas. Blade Runner deu o pontapé como um dos melhores filmes ambientados nesse universo. O filme traz Harrison Ford como Rick Deckard e Rutger Hauer encarna o antagonista Roy Batty. Deckard é um Blade Runner, um caçador de replicantes, formas de vida criadas por bioengenharia que simulam humanos.
Durante o filme, Deckard deve caçar quatro replicantes modelo Nexus-6, entre eles Roy Batty. É sem dúvida alguma o grande expoente da evolução da cultura cyberpunk, mostrando 2019 com carros voadores, replicantes criados para satisfazer necessidades humanas e depois serem aposentados/descartados. O que abriria também as portas para dois jovens japoneses (Masamune Shirow e Katsushiro Otomo) trazerem um outro diálogo interessante a ser explorado com Ghost in the Shell e Akira, respectivamente.
Caneta, papel e imaginação
Como é de se esperar, o universo de Cyberpunk 2077 não fica muito atrás das obras acima citadas. Night City – não confundir com a de Neuromancer – é um paraíso para os membros das “corps” e uma zona de sobrevivência para todos os outros que aqui se aventuram. A cidade faz com que os seus habitantes vivam como se estivessem tentando submergir.
Caso não lutem, afundam neste oceano de sangue, drogas e perversões. Caso forcem demais este filme d’água, apenas estarão chamando atenção para si. O sistema de RPG Cyberpunk foi criado por Mike Pondsmith, um grande mestre das artes de mesa, com participação ativa em outros sistemas como Forgotten Realms e Oriental Adventures, além de, é claro, ter trazido o primeiro a vida. E assim Cyberpunk 2013 surgiu.
A linha temporal de Cyberpunk é um tanto quanto confusa, com 2013 e 2020 sendo os carros chefe do sistema. Cada qual com seu próprio micro-verso e sourcebooks, estes servem como material expansivo. Eles dão informações mais profundas deste mundo, como o Crome Book (uma espécie de catálogo de itens e moda), Rockerboy e outros que servem como suplementos de novas classes e facções, além de novos cenários.
Com a vinda do terceiro sistema, o mundo de Night City sofreu mudanças bruscas com uma invasão imensa de novas gangues, sistemas de combate e alteração sintética. Algo que se tornaria excluído do cânone com o anúncio de 2077 e Red. Cyberpunk Red traz uma versão mais direta de aprendizagem, com os eventos de 2019. Ou seja, a linha temporal fica assim: Cyberpunk 2013, Red, 2020 e 2077.
Mas o que a lore dos livros de RPG tem a ver com o mundo do jogo? Hora, meu pequeno netrunner, tem tudo e muito mais! Afinal de contas, os eventos de 2077 estão ligados diretamente à primeira aventura de Cyberpunk 2013. Johnny Silverhand é seu nome, o garoto propaganda tanto dos Rockerboys, uma classe do sistema de RPG e o personagem interpretado por Keanu Reeves. Caso queira evitar spoilers, pare de ler por aqui e retorne após ter jogado o game. Caso já tenha fechado, ou não tenha problemas com spoilers, continue por sua conta e risco.
Love & Crome
O chip da imortalidade é o que faz a história de 2077 começar. Com informações cedidas pelo contato Dexter Deshawn, V vai atrás do chip. Este dispositivo é o local onde a emulação da mente de um netrunner ocorre, através do programa Soulkiller. Após o ataque nuclear liderado por Johnny a Arasaka em 2023, Saburo Arasaka usa o programa e prende a mente de Johnny dentro de um chip através do Soulkiller.
Interessante notar que o começo desta história se inicia na primeira aventura, que acompanha o manual original. Assim como Johnny Silverhand, a sua amada Altiera Cunnningham também é um fantasma cibernético. Nesta aventura chamada Never Fade Away, que envolve muito daqueles que voltariam em 2077 como Thompson e Rogue, temos o pontapé da história que é tida como cânone do universo Cyberpunk.
Altiera e Never Faded Away são tão importantes quanto Johnny. Isso é tão verdade que o trailer de revelação do jogo lançado em 2012 é uma referência à sua ilustração original nos manuais. Aos 0:43 do trailer podemos ver a ilustração retrabalhada na vitrine de Altiera no manual original, além da própria personagem que está no chão. O foco do trailer se assemelhar um pouco com ela.
Humanos tratados como equipamento
Notei que grande parte dos jogadores de Cyberpunk 2077 não se interessam, pra valer, por sua lore. Não estou dizendo que este é um jogo de nicho, ou que deveria ser de nicho, mas que há sim muito a se aprender e refletir sobre. O universo Cyberpunk nos traz um universo que, sinceramente, não é impossível de acontecer na vida real, com uma superpopulação cada vez mais fora de controle. Além de uma dependência doentia da tecnologia, o futuro pode ser mais perigoso do que imaginamos.
Hoje em dia já temos próteses cada vez mais avançadas, que anos atrás pareciam sonho. Próteses controladas via sensores remotos, fazendo com que o pensamento mova os membros robóticos, sem que estes estejam sequer conectados ao corpo. Exoesqueletos também não são mais ficção. E os estudos sobre a mente humana avançam cada vez mais, tanto na área da psicologia – sobre o ser consciente – quanto do próprio cérebro em si.
Há muito o que aprender para, quem sabe um dia, enterdemos como funciona a mente humana. Os estudos já feitos apontam que um modelo 3D perfeito de um cérebro humano necessitaria em torno de 2 milhões de Pentabytes. Algo que sequer possuímos na tecnologia atual. Mas, caso um dia isso venha a virar realidade, abrirá-se precedentes para outros problemas. Um exemplo, que podemos ver tanto em livros, mangás e jogos com a temática cyberpunk, é o individualismo do ser e como ele deixa de existir.
Imagem refletida
Em Cyberpunk 2077, e nos anteriores, existem os netrunners: especialistas em utilizar a interface à sua frente para poder navegar pelo mundo da Matrix/net. Em cyberpunk é possível derrotar um netrunner através de combinações corretas de habilidades, perks e atributos se o jogador for sagaz, permitindo um mergulho profundo nos segredos do invasor. Mas outras obras do gênero exploram um destino ainda mais tenebroso através da evolução tecnológica corporal desenfreada.
Se você acha a “imortalidade” de Johnny e Alt ruim com o Soulkiller, você irá achar eles um paraíso perto do Puppet Master. Este “vilão” de Ghost in the Shell mostrou ao mundo em primeira mão os poderes devastadores de um cérebro cibernético. Tenha como base não a terrível adaptação hollywoodiana, mas sim o mangá original ou o longa de animação de 1995. No mangá é ainda mais interessante.
Motoko começa a série como alguém despreocupada e, com o passar da narrativa, algo muda. Após o primeiro contato com Puppet Master, ela começa cada vez mais a duvidar se um dia já foi humana. Mas o pior ocorre com um simples catador de lixo, que tem sua mente totalmente apagada pelo hacker, acreditando piamente ser pai de família. Desolado, perdido e sozinho, em um corpo que não conhece e uma vida que jamais viveu. Este é o futuro que pode nos aguardar.
Outro filme que mostra a possibilidade deste futuro é Akira. Nele vemos uma população movida por instinto destrutivo, ao invés da lógica. O povo serve de cobaia, retratado nas pesquisas conduzidas em Tetsuo. Já Kaneda e sua gangue continuam a sua onda de falta de interesse pela educação e compromisso enquanto tentam resgatar o colega, que cresce cada vez mais ensandecido pelos poderes recém descobertos.
A obra se aprofunda em como a falta de controle sobre os poderes de Tetsuo repetem o passado de Akira. Blade Runner também nos traz um futuro sombrio onde carne, metal e linhas de código habitam inúmeros seres que sonham ser humanos, até um Blade Runner cruzar seus caminhos. 2049, a continuação do primeiro filme, traz a tona novamente o diálogo entre controle e alteração de memórias, clássicos que andam de mãos dadas com 2077.
Shadowrun em primeira pessoa
Gostem ou não, Cyberpunk 2077 já está entre nós. Deveria ter ficado mais tempo no forno, sem dúvida alguma, mas ainda tem um longo caminho para batalhar com outros títulos, tais como Deus Ex, Observer, Cloudpunk e vários outros. Mas, ainda assim, é uma interessante amálgama que estou amando visitar pela primeira vez, me fazendo relembrar de horas vivenciadas em fóruns, mandando Kamikazes e Nerps goela abaixo antes de cortar e explodir algumas cabeças.