Pense no seguinte cenário: um vírus mortal assola o mundo, a iminência de um ataque terrorista faz com que a população clame por uma solução estatal e diversas teorias da conspiração sobre quem, de fato, está por trás de tudo isso surgem. Esses três elementos lembram muito o ano de 2020, certo? Sim, realmente dá para imaginar os acontecimentos deste ano resumidos dessa maneira. Contudo, esse é o cenário de Deus Ex, um jogo que – por incrível que pareça – foi lançado em 2000, e, mesmo 20 anos depois, aborda temas cuja relevância ainda é notória.
Ambientado em um universo cyberpunk, o primeiro jogo da franquia Deus Ex é um clássico dos RPGs de ação. Contando a história de JC Denton, um agente da Coalização Antiterrorista das Nações Unidas – ou UNATCO – que possui um arsenal aprimoramentos tecnológicos sobre-humanos, o personagem é encarregado de, em sua primeira missão na agência, se infiltrar na base de operações de um grupo terrorista conhecido como “As Forças Secessionistas Nacionais” – ou NSF – a fim de recuperar cargas roubadas da cura do vírus conhecido como Gray Death. O que começa com o que aparenta ser apenas uma simples missão antiterrorista, na verdade, esconde uma história densa, cheia de questionamentos filosóficos e políticos.
Os elementos fundamentais da trama são revelados conforme a história progride. A Organização Nações Unidas é, na verdade, controlada pelos Illuminati, um grupo de poderosos cuja missão é dominar indiretamente todas as instituições da terra a fim de governar o mundo sem nenhuma resistência ou oposição. A Gray Death nada mais é do que o fruto de um projeto de micro robôs capazes de modificar as moléculas de um indivíduo. No entanto, o objetivo dos Illuminati, a princípio, não era criar uma doença letal, mas sim utilizar a tecnologia para o desenvolvimento de aprimoramentos humanos.
Bob Page, líder do Majestic 12, uma divisão dos Illuminati encarregada inicialmente de controlar e dominar toda tecnologia humana, decide roubar e mudar o propósito do projeto. Tendo essa tecnologia em mãos, o Majestic 12 se desmembra dos Illuminati, obtendo autonomia para fazer o que quiser sem a aprovação de ninguém.
Bob havia se decepcionado da maneira com que, em 2030, os Estados Unidos conseguiram superar uma crise de doenças e desastres naturais, algo que era visto pela organização como o colapso americano e o primeiro passo rumo a um governo mundial. Ao invés de fazer algo, os Illuminati preferiram se omitir, deixando a chance de ouro passar. Com o projeto em mãos, o Majestic 12 conseguiu criar um vírus cuja taxa de letalidade é 93%, lançando novamente uma onda de caos sobre os americanos.
A razão do vírus ser tão poderoso politicamente é bem clara: quanto maior o caos gerado, maior a justificativa para medidas autoritárias. O medo faz com que, ao invés dos detentores do poder terem que impor a força medidas contra a vontade a maioria, as pessoas implorem pela solução centralizada e coercitiva.
O caos não é a única possibilidade que a Gray Death traz. O Majestic 12 também possui o monopólio da cura, sendo capaz de liberar a vacina apenas para aqueles que se submetem ao seu comando. Os líderes políticos são os principais alvos dessa tática, pois, assim como na vida real, subornar aqueles que ditam as regras é a maneira mais efetiva de assegurar os interesses de um determinado grupo. Do mesmo jeito que os políticos aceitam quaisquer tipos de vantagens pessoais para passar leis que favorecem uma minoria, os mesmos farão de tudo para conseguir doses da vacina para o uso próprio, não importando a consequência dos seus atos para os outros indivíduos.
Toda a situação vivida no universo de Deus Ex tem os corporativistas – representados pelos líderes do Majestic 12 – como causa necessária, mas não suficiente. Para que os seus desejos de poder sejam saciados, é necessário controlar o estado – ou seja, os líderes políticos – a fim de que os mesmos utilizem o monopólio da força para impor os seus desejos.
As organizações secretas não podem interferir de maneira direta no comportamento de ninguém, mas, por controlarem todo o sistema, elas podem influenciar todas as agências em sua esfera de influência – incluindo a Organização das Nações Unidas – para agirem de acordo com o seu plano. A situação é tão escrachada que, em determinado ponto do jogo, JC Denton descobre que a base do Majestic 12 está localizada no subsolo da UNATCO.
Nesse ponto do jogo fica bem clara a intenção da ONU com a suposta missão antiterrorista do começo do jogo. A UNATCO, a mando do Majestic 12, quer impedir que as pessoas tenham acesso à cura e, utilizando a engenharia reversa, descubram a sua fórmula e possam fabricar a mesma de forma independente. Os terroristas, na verdade, buscam a reparação dos danos causados pelo grupo secreto, o que justificaria o roubo da cura monopolizada pelos próprios criadores do vírus.
O presente pode não ser tão caótico quanto a realidade de Deus Ex, mas o paralelo é inevitável. Governos buscam aumentar de tamanho e se manter no poder a qualquer custo, um processo que pode incluir o uso doenças como justificativa. Como todo evento de escala global, existem os prejudicados e os que conseguem se beneficiar da situação. Mesmo que corporativistas do mundo real não possuam o controle e nem o monopólio da cura do vírus, a sua habilidade de controlar os legisladores é uma ameaça constante, utilizando todo o seu poder para, de fato, governar indiretamente em benefício próprio.
Parafraseando Frédéric Bastiat, a lei não pode ser um instrumento de espoliação, pois a mesma é a justiça e, como tal, deve ser utilizada para a defesa da vida, da liberdade e da propriedade privada. Uma brecha é aberta quando a lei não está alinhada com esses princípios, permitindo que um grupo seleto possa explorar uma maioria. A consequência disso é o leviatã de Thomas Hobbes se mostrando cada vez mais evidente, concentrando uma série de direitos para si em prol de uma suposta ordem social.
Existem diversos temas que Deus Ex aborda, mas, devido aos acontecimentos atuais, a legitimação da coerção através do medo é o mais relevante. Renunciar a liberdade em troca de promessas de segurança não é, como diria Benjamin Franklin, uma boa ideia, já que quem faz isso geralmente termina sem nenhum dos dois.