O advento da internet e a velocidade na transmissão das informações proporcionadas pela mesma deu à luz alguns termos comuns do cotidiano. Não é difícil entrar nas redes sociais – ou qualquer outro local de interação entre indivíduos – e encontrar discussões homéricas sobre qualquer assunto polêmico que esteja em relevância. É nesse espaço que os sinalizadores de virtude demonstram toda a sua expertise, vomitando a sua superioridade moral sem qualquer embasamento e ignorando as consequências lógicas das soluções que eles mesmos propõem.
Lançado em meados de 2001, Metal Gear Solid 2 é a continuação de um dos títulos mais icônicos e influentes do mundo dos jogos, o Metal Gear Solid. Idealizado por Hideo Kojima, o jogador controla o personagem de codinome Raiden, um agente especial encarregado de resgatar reféns mantidos em cativeiro por um grupo terrorista. O que parece ser uma história digna da franquia de filmes do 007 na verdade esconde um roteiro extremamente denso que, mesmo sendo elaborado no início do século XXI, toca assuntos que só foram vir à tona com a popularização da internet e a consolidação da era digital como, por exemplo: fake news, bolhas sociais e até mesmo a cultura do cancelamento.
O livre arbítrio e a formação de bolhas sociais
Apesar da história extremamente complexa e rica de detalhes, o diálogo final entre Raiden e uma inteligência artificial – que, durante todo o jogo, assumiu a forma do comandante da missão – é onde as implicações sobre a informação descentralizada e sem um filtro regulador aparecem. Durante aproximadamente 15 minutos, os personagens discutem sobre o futuro de uma sociedade onde o livre acesso à informação pode, segundo a inteligência artificial, levar a humanidade à ruína, sendo necessário a atuação de um agente centralizador para resolver esse dilema – nesse caso a própria inteligência artificial.
O grande ponto do supercomputador durante esse diálogo é que o ser humano não é digno da liberdade de pensamento, pois ele buscará acreditar informações que apelem para o seu viés de confirmação. A sua ineficiência em distinguir os fatos o leva a aceitar notícias e informações que comprovem o seu ponto de vista, descartando tudo aquilo que não o interessa e criando bolhas sociais. A ausência do choque de opiniões inibe o processo de amadurecimento das ideias. Usando a dialética de Hegel, não há o choque entre tese e antítese e, consequentemente, não existe uma síntese.
A analogia dos elefantes e a interpretação dos fatos
Apesar do seu uso para expressar imagens cômicas e virais atualmente, o termo meme foi criado por Richard Dawkins para representar uma unidade de informação. O conceito de meme está presente dentro desse diálogo, pois a IA reconhece que os genes não têm a capacidade de transmitir a história humana. Todo conhecimento, ética e opinião é transmitido pelos memes, estando sujeitos também à seleção natural.
Segundo a IA, a era digital inverte o papel da evolução dos memes. A seleção natural é jogada de lado devido à tendência dos indivíduos de validarem apenas a informação que lhes convém, ignorando qualquer tipo de filtro lógico. Como exemplificado por Jonathan Haidt em seu livro “The Righteous Mind”, a intuição humana, representada por um elefante, terá sempre prioridade frente à razão, representada por um condutor. O elefante é influenciado por fatores externos e internos de um indivíduo como, por exemplo, os seus valores morais adquiridos desde o seu nascimento. A sua razão, representada pelo condutor, funciona apenas como um mecanismo para justificar as ações do elefante e nada mais do que isto.
A justificação da razão é seletiva, pois quem determina o caminho a ser seguido é o elefante, cabendo ao condutor apenas selecionar os fatos que melhor justifiquem os atos do animal. Isso explicaria o motivo pelo qual as pessoas, como dito pela IA, preferem as informações que validam as suas crenças. É doloroso para o homem ser apresentado a fatos contrários, já que, ao se tomar conhecimento de qualquer assunto político em relevância, o elefante automaticamente já escolhe um lado. Ora, se os homens tomam decisões baseadas em seus valores subjetivos e não conseguem se livrar do seu viés de confirmação, então a IA atuando como filtro de informação a solução perfeita para esse problema?
The mediator between head and hands must be the… machine?
Logo no início do diálogo, a IA conta que teve a sua consciência formada dentro da Casa Branca, da mesma maneira como as primeiras formas de vida surgiram através da junção de elementos químicos há bilhões de anos. Tornando esse trecho mais claro: a IA se julga a evolução perfeita dos ideais morais americanos, sendo composto por um conjunto de ideais solidificados com o objetivo de implementar tais valores. A máquina não é isenta e, assim como ditadores que buscaram controlar a informação, ela busca instaurar a sua agenda política, o que ela considera como certo.
É inegável que a era digital aumentou a disponibilidade de informação. Antes do amadurecimento da internet, o acesso à informação era escasso, sendo obtido através de jornais, telejornais e rádio. É possível argumentar que essas fontes de notícia possuíam um crivo muito mais rigoroso do que a maioria dos veículos de informação da internet, mas mesmo esse filtro jornalístico não estava imune aos juízos de valor e à ideologia. Separar o joio do trigo é uma tarefa negligenciada pela maioria das pessoas, mas um corpo regulador também possui imperfeições e, pela escassez de meios de se obter informação, é capaz de ratificar opiniões tendenciosas utilizando o seu monopólio.
Substituir a figura centralizadora de um humano pela IA de Metal Gear Solid seria apenas substituir um ideal pelo outro. Por mais que a máquina diga que irá apresentar as informações de forma factual, é impossível fugir do viés político dos indivíduos. Basta olhar os meios jornalísticos atuais para perceber como um mesmo fato pode ser noticiado de formas diferentes dependendo da inclinação ideológica do agente noticiador. Mesmo que a máquina busque eliminar a disseminação de qualquer tipo de interpretação factual, as pessoas voltarão à analogia do elefante e formularão raciocínios aparentemente lógicos para confirmar os seus valores morais e políticos.
O veneno faz o soro
O problema enxergado na descentralização da informação é a criação de bolhas sociais por causa dos valores diferentes de cada indivíduo, o que impede a seleção natural das ideias. Entretanto, ao invés de um sistema centralizador, o livre mercado e a concorrência entre os meios de comunicação, juntamente com um debate aberto e a não demonização dos grupos que defendem ideias diferentes solucionaria a questão. A neutralidade da informação ainda é apreciada pela sociedade, logo um veículo de notícias que busque apresentar informações factuais terá o seu reconhecimento, mas isso não o deixará imune às eventuais críticas, já que também estão sujeitos a erros. Do mesmo modo, veículos cujo viés político é abertamente declarado também possuem demanda, e é muito melhor saber que uma notícia é claramente enviesada do que depender de um único serviço de informação que pode inserir o seu viés de forma sorrateira.
A centralização não resolve nada, nem mesmo se o mediador for um supercomputador. Por mais que a IA diga que não quer censurar, mas sim dar contexto às informações para as futuras gerações, ela estará partindo da visão que ela julgou certa para o fato. Caso ela queira agir de maneira utilitarista, terá que omitir informações verdadeiras, mas que causariam problemas à sociedade, e interpretar fatos da maneira que ela achar benéfica à sociedade. Se optar pela forma factual, ela terá que lidar com a forma que indivíduos diferentes interpretam a mesma informação, apelando para o caminho que ela disse ser contra: a censura.
Os argumentos levantados no diálogo são pertinentes e, mesmo sendo lançado em 2001, atingem temas relevantes da sociedade contemporânea, mas apenas a descentralização dos meios de comunicação pode resolver esse problema de maneira satisfatória. Sim, as notícias tendenciosas e meias verdades existirão, mas o melhor instrumento capaz de combater esses males é a liberdade para se tecer críticas, onde o mercado irá julgar e recompensar os veículos que melhor suprem uma demanda. A doença detectada pela IA também é a cura, ao contrário de uma figura mediadora que iria impor o seu modo de enxergar o mundo para todos. Se não há como controlar o nosso elefante, há como compreender o seu funcionamento, buscando confrontar as nossas crenças sabendo que esse processo será difícil e doloroso.