Julgar um título no Acesso Antecipado é quase sempre uma tarefa inglória. Tanto potencial ainda latente, tantas expectativas ainda no auge, tantas paixões despertadas por uma aventura que promete ser mágica um dia. Julgar um título de sobrevivência no Acesso Antecipado é o inferno na Terra. Ou em Kepler, no caso desse aqui. Mesmo jogos do gênero que se revelaram grandes e sólidas experiências meses ou anos depois, como no caso de Citadel: Forged With Fire, naufragaram em seus lançamentos iniciais, a ponto de causar vergonha alheia (como Conan Exiles).
Entretanto, o tempo urge e a mim foi confiada a missão de embarcar para Kepler e contemplar o desastre em seus primeiros momentos. Population Zero é uma amálgama confusa de boas ideias envelopada em um motor gráfico que consegue ao mesmo tempo consumir recursos e entregar a cachoeira mais feia em um jogo eletrônico desde os anos 90. É uma montanha-russa de emoções, um título contra o qual lutei na vã tentativa de aproveitar minha estadia em tão cativantes paisagens.
Population Zero abre com uma cena introdutória que revela que os conspiracionistas estavam certos desde o início: uma nave alienígena realmente caiu em Roswell nos anos 50. A partir da tecnologia descoberta no disco voador, a Humanidade evoluiu nessa realidade paralela de uma forma singular, com grandes avanços no uso de energia e novas máquinas. E guerras também, porque o ser humano é o ser humano. O resultado desse progresso sem freios foi o esgotamento mais rápido dos recursos do planeta e uma civilização à beira do colapso e da auto-destruição.
Por causa disso, uma gigantesca espaçonave colonizadora foi criada e apontada para um exoplaneta que poderia abrigar vida humana. Você faz parte dessa expedição cuja missão é dar adeus a boa e velha Terra e começar tudo de novo em outro lugar. Ainda em órbita do novo planeta, batizado de Kepler, uma misteriosa explosão racha a nave ao meio e os sobreviventes são arremessados para a superfície. Você acorda de um dos casulos de fuga e começa o jogo.
Opa, eu menti. Não começa ainda não. Você é saudado por duas longas telas de carregamento. Toda santa vez que você inicia. A cutscene até pode ser pulada, mas o resto não. A primeira tela de carregamento abre sua conta na plataforma, na qual você pode selecionar o modo de jogo desejado. O primeiro modo é o PvE e você precisa aumentar o nível da sua conta para acessar os outros modos. A segunda tela, mais longa ainda, finalmente te coloca no planeta.
Então, aqui estamos em Kepler, como um náufrago espacial. Em nenhum outro momento de minha jornada haverá qualquer referência, mesmo que mínima, aos eventos que apareceram na abertura. Embora eu seja um grande defensor de contextualização em jogos de sobrevivência, não acredito que isso signifique uma cutscene e um abraço.
O verdadeiro diferencial de Population Zero, segundo seus desenvolvedores, é que você tem sete dias para fazer o que tiver que fazer, seja lá o que for, antes de seu personagem ser apagado da existência. É uma pressão muito forte ou uma metáfora sobre a volatilidade da existência humana? Jamais saberemos. Ao realizar tarefas, você desbloqueia pontos que irão evoluir sua conta, para acessar outros modos, como o alardeado PvP, que, aparentemente, é o verdadeiro foco do jogo. Em nenhum desses modos, o limite de sete dias é alterado.
Dia um
A área inicial é uma caverna, onde se passa o rápido tutorial. Não há mesmo muito o que se aprender. Population Zero se comporta como a maioria dos survival: pegue recursos, fabrique ferramentas, cuide de sua fome e sua sede, enfrente inimigos, sobreviva. A impressão inicial é muito positiva, uma vez que a direção de arte é caprichada e a sensação de se estar em um cenário alienígena é bastante palpável. Evito o primeiro confronto na caverna e o segundo, para ver logo a luz do dia.
A paisagem que se descortina na minha frente é radiante. Um misto de deslumbre e medo me atinge. É a Era Hiboriana de Conan Exiles tudo de novo: estou só, com a roupa do corpo em uma terra inóspita mas lotada de maravilhas. Logo encontro os primeiros habitantes e eles são fofos demais para se atacar. A segunda criatura que vejo rosna de forma ameaçadora, tem porte de carnívoro e eu mantenho distância. O jogo me orienta para ir até o Hub, uma colônia humana na superfície, atravessando a região desconhecida.
Mais adiante, vejo a fera lutando contra uma ninhada dos felpudinhos, que vomitam uma espécie de ácido no agressor. Tento ajudar os simpáticos monstrinhos e erro o ataque. Acerto um deles por acidente e todos se voltam contra mim. Morro coberto de vômito, mas com o coração cheio de boas intenções.
Materializo-me no tal Hub. Economizei na caminhada, embora tenha perdido tudo que coletei antes. É um preço justo a se pagar. O administrador da colônia não tem tempo para falar comigo, mas eu entendo o sistema: em Kepler, a luz do dia dura sete dias da Terra. Quando a noite cai, uma estranha radiação é emitida e todos os humanos são transformados em aberrações monstruosas, que morrem com o amanhecer seguinte. Há quanto tempo essa colônia existe? Não tenho respostas. Porém, agora sei que há uma chance de ser salvo: basta eu demonstrar meu valor e minha utilidade para a colônia que eles me colocarão em um casulo capaz de me proteger da noite aniquiladora.
É uma meritocracia! Porém, os desenvolvedores alegam que todo mundo morre em sete dias. Agora, estou confuso. As mensagens nas telas de carregamento também informam que eu tenho 168 chances de sobreviver. É o número de horas em sete dias. Porém, se apenas os mais valorosos são selecionados para um número limitado de casulos, isso não significaria que a colônia um dia chegaria a um limite em que esse sistema de eugenia não seja mais necessário? Ou vão deixar casulos vagos? E onde está toda essa gente? Estou absolutamente sozinho no servidor e há apenas três NPCs em todo o lugar.
Dia dois
A primeira missão que me passam é recuperar amostras de tecido daqueles que sofreram mutações, os chamados Voids, que estão mortos com a luz do Sol. No mapa, esses cadáveres estão marcados a centenas de metros do Hub. Pego minha barra de ferro, minha coragem e coloco o pé na estrada. E como se anda em Population Zero. Nada é perto, tudo é longe.
O território está infestado de Kvars, os predadores de seis pernas que podem me trucidar em instantes. O constante rosnado deles enche meu fone de ouvido. Porém, o combate no jogo é um de seus pontos mais fracos. O que é irônico, porque o PvP é supostamente seu ponto mais forte. Não há combos, a esquiva é limitada, a movimentação é muito estranha. Manter o foco em quem você está batendo é um exercício de constante reajuste, principalmente porque cada acerto te faz recuar e girar ligeiramente. Bloquear não é muito efetivo. Então, eu ataco e ataco e espero pelo melhor. Até em Minecraft o combate é mais preciso.
Decido que fugir pode ser uma estratégia mais adequada. Morro de novo. Reapareço no Hub e tenho que caminhar centenas de metros para recuperar minha mochila. Encontro várias fogueiras espalhadas pela área, sinais de ocupação humana. Porém não vejo viva alma.
A melhor estratégia para recuperar as amostras que preciso é correr, apertar o botão de pegar e continuar correndo. Todas as criaturas do jogo tem um limite de área de atuação. Elas só te perseguem até determinado ponto. É uma característica que dá para ser explorada com malícia.
Estou bem longe do Hub agora e encontro uma ilhota no rio em que os Kvars rugem para o horizonte incessantemente. Parecem presos em um loop de comportamento. Não sou um exobiólogo (aliás, o que eu sou?), então não tenho como afirmar se isso é um bug ou se é intencional. Chego perto e me ignoram. Para minha sorte, há cadáveres de Void próximos. Coleto o que tenho que coletar e saio do jogo. Encerrei por hoje.
Dia três
Reapareço no mesmo lugar. Então, funcionou: eu não apenas retorno no ponto em que parei (sem um teleporte arbitrário para o Hub) como também os Kvars continuam presos no ciclo de rugidos para o infinito. Os cadáveres de Void deram respawn, o que me permite completar o número de amostras sem risco de vida. Agora, toca de fazer o longo caminho de volta.
O Hub possui todas as bancadas de trabalho que eu necessito. Nesse primeiro modo de jogo, você não pode construir nada. Quando muito, colocar umas bandeirolas no chão e deixar umas fogueiras. Por outro lado, essas bancadas não estão bem distribuídas no Hub, obrigando o jogador a caminhar como uma barata tonta movendo recursos. Population Zero é para quem gosta de andar.
Apesar de pedra ser um dos recursos necessários do jogo (e praticamente qualquer jogo de sobrevivência), aqui elas são escassas. Não estou mentindo: pedra é escassa no planeta. O que é muito alienígena.
Completada essa primeira missão, vem a próxima: conseguir 100 pedaços de carne crua e 50 pedaços de carne de Sahrim, um bicho que nem sei qual é. Começou o grinding.
Dia quatro
Minha primeira abordagem foi atrair Kvars jovens para colônias de Yutts, os felpudinhos, e aguardar o resultado da luta. Já não me importo mais com o destino das criaturinhas. A meta agora é carne. São eles ou eu na contagem dos sete dias. Cada Kvar jovem encara cinco ou seis Yutts. O sobrevivente desses conflitos terá que encarar a mim. Ainda assim é arriscado. E demorado. E lembre-se: preciso de 100 carnes.
Para não ter problemas, vou carregando as carnes em lotes de volta para o Hub e armazenando com o banqueiro, um dos três NPCs disponíveis. Três seres humanos no planeta inteiro e eles são: um chefe que não faz nada, um chefe que dá ordens e um banqueiro. A Humanidade está perdida mesma. É um processo tedioso.
Felizmente, com o banho de sangue consigo também couro, que ajuda a melhorar minha roupa de proteção, e osso, que me permite fazer uma espada (não pergunte). Isso me dá a possibilidade de encerrar as lutas com mais rapidez e segurança e até encarar um Kvar adulto com relativa sobrevivência. Com tudo isso, vou evoluindo em perícias e vantagens, mas minha conta continua em Nível 1.
Dia cinco
Do nada, minha conta agora é Nível 8. Tenho acesso a todos os modos do jogo. Só que não: é impossível selecionar qualquer um que não seja o modo inicial PvE. Nem queria mesmo. Ignoro.
Como um roguelite, Population Zero vai liberando vantagens aleatórias. Do tipo “causar 10% a mais de dano” ou “armazenar 8% a mais de líquidos no corpo”. Essas vantagens não são permanentes e supostamente somem se eu morrer. Por causa disso, existem slots de vantagens permanentes e salvas, que garantem que eu renasça com elas. A descrição delas é praticamente idêntica (como se vê abaixo). Para piorar, não faz diferença se eu morro ou não: nenhuma vantagem é perdida. Talvez seja algo relacionado à destruição do personagem. Não, garanto que não.
Descubro outros humanos em Kepler. A silhueta de um deles na entrada de uma caverna é um choque. Claramente humana. O que você faz em uma situação dessas, isolado em um planeta hostil onde tudo pode te matar? Busca uma aproximação pacífica com outro ser humano, um companheiro de infortúnio. Eu chego mais perto e ele corre em minha direção com sangue nos olhos. Ele me ataca com punhos fechados e causa quase tanto dano quanto minha espada de osso. Maldição. Torno-me um homicida porque era ele ou eu, sete dias, aquelas coisas.
Mais à frente, esbarro no tal Sahrim, uma mistura de boizão, tartaruga e pedra ambulante que é obviamente um herbívoro e obviamente forte pra caramba. Mal tenho tempo de vê-lo e sou morto por outro ser humano, que me enxergou lá do quinto dos infernos e veio correndo na minha direção. Se o sujeito desarmado me deu trabalho, esse com um machadinho me mata em segundos. Chega de Population Zero por hoje.
Dia seis
Depois de quebrar muitos cactos, farmar muito couro, estou com a armadura mais forte que o jogo me oferece, sem ter que encontrar metal. Analisando a árvore tecnológica, vejo que não há armas de longo alcance. Nenhuma. É de se estranhar que os humanos não tenham recriado nem mesmo um arco e flecha nesse planeta esquecido, mas você pode dominar metalurgia e medicina com os recursos que a terra dá. Eu não queria um lança-foguetes, como Ark te disponibiliza no meio da mata primitiva, mas um arco resolveria 100% dos combates travados que o jogo traz.
Blindado da cabeça aos pés, vou caçar Sahrim. Como esperado, o bicho é forte. Há filhotes e uma mãe, imensa. Caço os filhotes, que atacam com um tipo de vômito e uma língua de chicote. É impressionante que duas em três criaturas desse jogo tem ataque de longe e eu estou preso com armas de combate corpo a corpo. Quando o filhote está quase morto, ele foge pra perto da mãe. Faz sentido. O bicho é lento na hora de lutar, mas uma bala na hora de fugir. Com muito sofrimento, tentativa e erro, paciência e um novo encontro com o maluco da machadinha, consigo as 50(!) carnes de Sahrim.
Ganhei meu passe para a sobrevivência? Negativo. Ganhei outra missão: extrair cristais no deserto. O que promete ser bastante desgastante. A única vez em que beirei o deserto fui atacado por um besouro que se enterra na areia e pula em cima de você com uma carapaça cortante. Se você não acertá-lo no momento exato em que ele está no ar, ele volta a se enterrar e te espreitar.
Minha roupa já está em frangalhos. Reconstruir tudo implica em farmar animais, quebrar cactos, visitar duas mesas de trabalho diferentes e esperar os tempos de fabricação. A esta altura do campeonato, já não sei mais se quero mesmo continuar nesse mundo.
Dia sete
Está de noite! Calma. Não é o fim ainda. É uma espécie de penumbra que antecede o momento final. É o jeito do jogo me dizer que minha hora está chegando. Curiosamente, há muito mais fogueiras espalhadas no cenário e mochilas de exploradores que eu não posso abrir. Population Zero tenta te passar a sensação de que há outros náufragos como você, mas não vi ninguém. Uma vez que não há uma tela de escolha de servidores, acredito inclusive que estou jogando localmente. É uma decisão estranha fingir que há mais gente por aí e eu ver apenas o que deixam pra trás.
Com a esperança de que obter os tais cristais seja a última tarefa que irá me assegurar um lugar em um casulo durante a noite mortal, faço o que qualquer um faria: disparo em linha reta para o deserto.
E o que acontece? Os besouros-lâmina emergem das areias como pragas. A tática de passar por eles correndo é quase suicida. Parar para enfrentar é pior ainda. Sigo em frente, porque sete dias e coisa tal, né? Descubro da pior maneira que há outra ameaça no deserto: um calor absurdo como nunca vi em nenhum jogo que traga esse tipo de bioma. Eu até encontro os tais cristais, mas tombo vitimado por uma insolação em plena escuridão.
Quando eu me materializo no Hub, me dou conta de que perdi boa parte das minhas roupas, todos os meus itens e não tenho tempo para farmar tudo de novo. A única solução é chegar no meu cadáver e recuperar o que perdi. No meio do deserto. Talvez se eu me mantiver hidratado? Na segunda tentativa, não chego nem perto de onde tombei antes. Faltam horas para o final do ciclo, estou quase de volta à estaca zero e o calor do deserto parece ser o último de uma longa série de obstáculos desbalanceados.
Entrego para a sorte. Vamos ver como é essa destruição de personagem.
Dia oito
Não consigo entrar no jogo. O botão de jogar me devolve três vezes seguidas para o menu iniciar. Os caras estavam mesmo falando sério sobre só poder jogar sete dias? Eu entendi errado?
Dia um
Minha conta ainda é Nível 8. Mesmo assim, não consigo acessar nenhum outro modo, exceto o PvE simples. Eu sonho em conseguir acesso ao modo “True Story”, que promete grandes revelações sobre tudo que está acontecendo. Na verdade, até mesmo o PvP seria uma mudança de ares e eu poderia ver como o combate funciona entre jogadores.
Inicio outra sessão de PvE. Estou de volta ao tutorial. É o momento que aproveito para gravar o vídeo que você viu acima. O mapa não é aleatório, então o jogador está condenado a repetir o mesmo ciclo na mesma região a cada sete dias. Se você tiver uma viagem no meio, azar o seu. Se não conseguir cumprir as metas, azar o seu. Desconfio que até mesmo o casulo é uma mentira. Porém, há mais pedras no cenário dessa vez. Os desenvolvedores estão evoluindo. Ainda assim, no momento em que aperto para parar a gravação é o momento que sinto que esgotei minha paciência com Population Zero.
Foram nove horas que pareceram sete dias, em que coletei recursos, matei os mesmos três bichos, não construí nada, não avancei nada, não evoluí meu personagem em nada. Saio de Population Zero com mais dúvidas do que entrei, com a esperança de que Kepler e suas paisagens fantásticas, sua trilha sedutora e sua eventual história ganhem um jogo à altura daqui a alguns meses.