A Guerra de Canudos foi um dos eventos mais marcantes e trágicos da História brasileira. No Arraial de Canudos, no interior da caatinga nordestina, 25 mil pessoas, entre homens, mulheres, crianças e idosos, foram mortas por tropas republicanas no final do século XIX. Seu único crime foi buscar uma vida melhor, vivendo do que a terra há de plantar. Hell Clock pega esse momento tenebroso do passado como ponto de partida para uma jornada infernal.

A desenvolvedora brasileira Rogue Snail se inspira em títulos como Diablo, Hades e Path of Exile para criar seu próprio RPG diabólico. No lugar de mitos e monstros tão manjados de tantos jogos, temos aqui criaturas únicas de pesadelo e personagens de sotaque nordestino em uma disputa movida a vingança e redenção.

Hell Clock

A terra

O Arraial de Canudos foi arrasado sob o fogo de canhões. As tropas federais que entraram em suas ruas entraram para matar os sobreviventes, degolar os fugitivos e incendiar as casas que restaram. Seu legado foi apagado e suas ruínas hoje jazem embaixo das águas de um açude. Revisitar a tragédia de Canudos, ainda que no contexto de um jogo de fantasia, é um dos grandes méritos de Hell Clock.

E mesmo seus elementos fantásticos estão mais próximos do realismo fantástico latino-americano, com suas tradições e crenças, do que dos chavões europeus ou do catolicismo colonial. O primeiro ato apresenta um mergulho em uma masmorra que lembra demais corredores já cruzados em tantos RPGs com temática medieval, para se aprofundar logo em seguida em direção a um inferno de fogo, enxofre e rochas. A brasilidade de Hell Clock, presente na geografia do sertão, surge a partir do segundo ato, quando vagamos pela paisagem da caatinga, entre carcarás demoníacos e pés de mandacuru, até chegarmos em uma versão reconstruída do Arraial de Canudos.

Hell Clock

Se, em um primeiro momento, talvez Hell Clock emule demais caminhos já trilhados antes, o cramulhão mora nos detalhes, para logo em seguida tomar de assalto nossas retinas. O design de criaturas (principalmente chefes) e lugares sempre reserva um espaço para referências de nossa cultura. Temos estátuas de santos, temos relíquias típicas da fé herdada dos portugueses, convivendo lado a lado com peças de artesanato e animais de nossa fauna.

Um dos chefes se destaca, a recriação demoníaca de um comandante de tropas, um degolador, refeito com toda sua monstruosidade refletida em sua carne, uma amálgama de cabeças decepadas, armas e uniforme militar da recém proclamada República. Ele é apenas um dos exemplos de uma obra repleta de adaptações, uma obra que faz uma Canudos “do Mundo Invertido”, um espaço de dor e sofrimento condenado em um ciclo interminável de tragédia e vingança.

Hell Clock

Tudo isso é embalado por uma trilha sonora que remete ao primeiro Diablo, porém tocado com instrumentos típicos brasileiros, uma espécie de antropofagia cultura que teria deixado os Tropicalistas orgulhosos.

O homem

Hell Clock é conduzido por Pajeú, uma figura real do conflito de Canudos. Ele foi um dos líderes guerrilheiros que garantiu a vitória do arraial contra as forças republicanas nas três primeiras investidas, antes do ataque derradeiro. Pajeú tinha sido soldado ou oficial da polícia e usou seu conhecimento tático para treinar e preparar a resistência. Nas palavras de Euclide da Cunha, que narrou os eventos em sua obra “Os Sertões”, Pajeú seria um homem de “bravura inexcedível e ferocidade rara”. No final de tudo, Pajeú também sucumbiu…

… para renascer na ficção de Hell Clock, como um espírito vingador. Ele é trazido de volta à consciência com o artefato que dá nome ao jogo, um relógio amaldiçoado que marca o tempo que ele tem para cumprir sua missão. Cabe a Pajeú defender Canudos mais uma vez, agora em uma armadilha no limbo, em uma dimensão suspensa. Cabe a Pajeú resgatar o apóstolo Antônio Conselheiro das garras do mal para que as almas de Canudos finalmente possam descansar.

Hell Clock

Juntam-se a Pajeú outras figuras ora reais ora criadas especificamente para o jogo. É prazeroso ouvir sua dublagem, seu sotaque, suas palavras, que adicionam uma camada extra de imersão em um título tão aguerrido. Da mesma forma, muitos dos chefes que Pajeú vai derrotando em sua jornada são personagens reais que participaram de alguma forma do massacre de Canudos.

A luta em Hell Clock

Não estaríamos falando de um jogo inspirado em Canudos se não houvesse violência. Pajeú vai abrir caminho na base da bala, da peixeira, da faca e do poder de sua fé. Para tanto, Hell Clock oferece ao jogador um leque caprichado de possibilidades para participar de uma guerra literalmente eterna. Há armas e habilidades de todos os tipos, que podem ser alteradas com o uso de Relíquias, assim como uma árvore complexa de vantagens que podem ser desbloqueadas ao longo da campanha. Isso permite que sejam criadas múltiplas combinações e estratégias, de acordo com o estilo de cada jogador.

Hell Clock

Hell Clock traz o tipo de roguelike que eu curto: o roguelike em que todas as sessões ajudam. Cada investida é garantia de acúmulo de almas liberadas e novos equipamentos que vão permitir que o jogado vá mais longe na próxima tentativa. Os jogadores mais aptos conseguirão avançar mais rápido, mas os jogadores menos aptos não terão que sofrer travados, basta um pouco de paciência e força bruta que o mar de inimigos se abre. Mesmo quando é necessário um pouco mais de grind, cada sessão é tão satisfatória e divertida que eu não me importava em tentar mais uma vez, mais outra e mais outra, até os dedos doerem.

Não que o jogo seja difícil. Na verdade, e talvez esse seja o seu principal defeito, ele é desbalanceado. Como resultado de um excesso de mecânicas, nem todas explicadas adequadamente, há muitas possibilidades para o jogador desfrutar. Algumas tornarão o avanço quase impossível, outras irão “quebrar” o fluxo por atravessarem as legiões de monstros como faca quente na manteiga. Experimentando aqui e ali, descobri uma técnica que mudou completamente a minha forma de jogar e transformou meu Pajeú em um ciclone de devastação.

Hell Clock

É garantido que a Rogue Snail ajuste detalhes no jogo no lançamento, aumentando o efeito de algumas técnicas ou reduzindo outras. Na forma em que o jogo foi testado, ele já está livre de bugs e falhas gritantes, mas jogador curioso sempre pode encontrar maneiras criativas de exterminar seus oponentes.

Ironicamente, o artefato Hell Clock é o que menos peso tem na jogabilidade. Ele funciona como uma ampulheta: quando o tempo se esgotar, a sessão termina e Pajeú retorna para a sede de Canudos. Pode parecer um forte limitador, mas o fato é que esse tempo é generoso e é mais provável que o jogador seja morto do que chegue ao final do tempo. Ao longo do caminho, é possível adquirir extensões desse tempo com inimigos derrotados, assim como também é possível comprar dilatações permanentes desse limite temporal. Se tudo mais falhar, o jogador pode também escolher jogar no modo relaxado, em que o Hell Clock não é acionado.

Para Pajeú, o tempo se torna outra armadilha. Ao final dos três atos de sua campanha, a guerra continua. O descanso é uma mentira. Em seu lugar, há um novo modo infinito, que adiciona ainda mais possibilidades, mas também mais desafios. A luta de Pajeú não termina, assim como a memória dos eventos de Canudos.

94 %


Prós:

🔺 Trilha sonora e dublagem magníficas
🔺 Design caprichado
🔺 Ambientado em um pedaço pouco explorado da História do Brasil

Contras:

🔻 Mecânicas podem ser confusas aqui e ali
🔻 Desbalanceado

Ficha Técnica:

Lançamento: 22/07/2025
Desenvolvedora: Rogue Snail
Distribuidora: Mad Mushroom
Plataformas: PC

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