Engraçado pensar que a cada lançamento, a Devolver Digital reitera seu lugar como publisher fora da caixinha e agrega títulos diferentões em suas propostas. O que reforça essa constatação é o lançamento de Card Shark, jogo desenvolvido pela Nerial – responsável pela série Reigns – e fruto da mente brilhante do artista Nicolai Troshinsky.
Com a proposta de transformar a jogatina em arte e os testes de habilidade em sessões estressantes, embarcamos em um resgate histórico que brinca com a tentativa de recriar diversos truques de cartas. Card Shark, assim como a famosa pintura de Caravaggio, representa aquela pessoa que é afiada com as cartas. Erroneamente confundida como um termo pejorativo, o trabalho da Nerial serve para mostrar a jornada de um rapaz mudo que desenvolverá suas habilidades com as cartas, na tentativa de subir na sociedade francesa do século 18.
Começando como um simples serviçal, você precisará provar seu valor, monetário e social, em partidas de cartas e duelos, contra diversos nomes importantes da história da França. Prepare-se para enfrentar um jogo com cartas e não “de cartas”, que consegue ser divertido e desafiador, enquanto tenta criar uma história interessante.
Um card game sem ser sobre cartas
Não se iluda ao pensar que Card Shark será mais um jogo de cartas qualquer, com partidas de carteado para entretê-lo. A proposta da Devolver Digital é trocar as partidas e colocá-lo para trapacear com as cartas, criando testes que vão desafiar a atenção dos jogadores e criar situações de estresse em partidas aflitivas desconfortáveis.
Recrutado pelo Conde de Saint-Germain, uma misteriosa figura do século 18 e com sua história sendo considerada uma lenda, muitas vezes atrelada ao misticismo, você fará parte do Acampamento Cascarot e viajará pela França ao lado de Germain, o Mágico e Ireneo Funes, este último uma clara referência à criação de Jorge Luis Borges (Funes, o memorioso), enquanto o mago resgata a imagem dos misteriosos ciganos e suas caravanas. Com estes três mentores e companheiros, o seu personagem aprenderá 28 truques com cartas para manipular a mesa em que estiverem participando, roubando políticos e membros da realeza.
Troshinsky, além de emprestar seu estilo artístico, é um entusiasta dos jogos de carta e um aficcionado pelas habilidades e inteligência daqueles que conseguem manusear o baralho e manipular os jogadores. A partir desta paixão, em parceria com a Nerial, conseguiu traduzir os diversos truques em mini-jogos, e neste ponto entramos na melhor e mais importante característica de Card Shark. Os desenvolvedores conseguiram criar um caminho para os jogadores iniciarem com truques mais simples e fáceis, enquanto evoluem na história até chegarem em partidas mais complexas, com técnicas mais avançadas e complexas.
Habilidade com cartas através dos controles
Tendo dois pontos altíssimos e que são as minhas justificativas para recomendar este jogo, um deles está na experiência de jogo. Prepare-se para assumir o papel do segundo jogador, como um “sidekick” ou “wing man”, chame-o como quiser, enquanto Saint-Germain será o principal jogador e responsável por derrotar os adversários. Confuso, não é mesmo? Acredite em mim, pois funciona. Os truques ensinados, com os nomes mais estranhos possíveis, vão desde cartas escondidas, marcações ao embaralhar, cortes pré-definidos no baralho, espiar a mão do adversário e até mesmo marcar ou entregar cartas.
“O coletor desalinhado” e “Os dedos indiscretos” são os primeiros nomes que surgem como técnicas, independente do nome bizarro eles consistem basicamente em traduzir a habilidade com as cartas em informações passadas secretamente para o seu parceiro de mesa. Algumas vezes como serviçal e outras como um mero jogador, os desenvolvedores conseguiram transportar QTE (quick time events) em mecânicas que geram certa aflição com diversos pontos de atenção e objetivos a serem alcançados ao mesmo tempo.
A jogabilidade durante as partidas já começa antes da partida propriamente dita, em que você terá que apostar moedas e quanto maior a aposta, a barra que mede a desconfiança do seu oponente aumenta fazendo com que o seu tempo para executar seus truques e falcatruas. Quanto menor a desconfiança, mais tempo você terá para usar sua habilidade no carteado.
Quando você estiver como serviçal, a jogabilidade será traduzida em servir vinho para observar a mão do adversário, esconder cartas nos bolsos, marcar cartas em baralhos secundários, usar o pano para limpar a mesa ou manusear taças para passar códigos para Saint-Germain. Passando para a mesa como mais um jogador, a experiência do jogador será traduzida em analisar a mesa para distribuir as cartas corretamente, recolhendo a mesa na direção e ordem correta, truques de corte no baralho e até mesmo o resgate do truque ensinado pelo Ireneo Funes para trocar e esconder cartas.
Tirando as partes em que você precisa se movimentar pelos cenários ou ir até pontos de interesse, em que o estilo artístico acaba travando demais a movimentação do seu personagem, o jogo flui bem na hora do carteado e os controles simples ajudam na execução dos truques. A maneira como o jogo sinaliza os momentos de interação, no momento e local correto em que você precisa manusear ou escolher as cartas, apoia no entendimento e contribui para a jogabilidade ser agradável.
Importante ressaltar que o jogo, por mais desafiador que possa ser por apresentar muita coisa ao mesmo tempo para ser administrada, analisada e controlada, também oferece a opção de morte permanente (permadeath). Como podemos morrer jogando cartas? Simples. Tente trapacear em uma época em que era comum andar carregando um florete ou arma de fogo. Basta você estourar a barra inferior, em que marca a desconfiança do adversário, para ele enfrentá-lo e até mesmo atacá-lo. Se estiver jogando na versão mais difícil, com certeza você não durará por muitos capítulos.
Jogo bonito, bem feito e formoso
O estilo artístico trazido por Nicolai Troshinsky se aproxima de obras em xilogravura, numa mistura de rococó com personagens como se fossem bonecos de corda. Ao mesmo tempo em que se preocupa na tradução dos sentimentos e reações dos personagens, brinca com as expressões ao longo das partidas. Da tranquilidade à revolta ao saber que está sendo trapaceado acaba sendo uma atração à parte, enquanto o visual colorido e iluminado da região de Pau, na França do século 18, acabam sendo um deleite para acompanhar e admirar enquanto jogamos.
Algumas vezes as falhas e ranhuras do que seria uma xilogravura em movimento acabam atrapalhando no reconhecimento rápido do naipe das cartas, dependendo de como elas acabam “caindo” na mesa. Muitas vezes você terá pouco tempo para fazer uma ação enquanto analisa a mesa, prestando atenção no que está sendo feito, na barra de reação do adversário (o tempo que você tem) e na sequência correta dos botões que precisam ser apertados. Tudo isso pode ser um desafio extra para quem acaba perdendo atenção por ter admirado a arte por tempo demais, como aconteceu comigo diversas vezes.
Com uma jogabilidade agradável e muito bem pensada para aumentar a imersão, mesmo me fazendo perder o interesse na história por conta dos desafios serem mais interessantes do que uma conspiração envolvendo a realeza francesa, o estilo artístico fecha a conta para ser um dos meus indies favoritos dos últimos anos.
Tudo isso resume o mérito impressionante da Nerial, que conseguiu trabalhar com um artista para transformar um jogo ao melhor estilo Wario Ware em algo agradável, bonito, diferenciado e desafiador. Sem contar a trilha sonora, composta por Andrea Boccadoro, toda orquestrada e que resgata a atmosfera dos antigos desenhos mudos e transportam a época em que o jogo se desenrola, levando tudo isso para dentro dos consoles e PC.