Há algum tempo atrás, a Bioware mantinha o título como uma das desenvolvedoras mais talentosas e influentes no mercado de games, crescendo de forma astronômica ao longo de suas franquias Mass Effect e Dragon Age, que tornaram-se nomes de grande porte quando a EA entrou no esquema como sua distribuidora. Mais plataformas passaram a receber os títulos, mais publicidade estava envolvida e diversos prêmios também.
Alguns anos depois, ocorre uma grande queda com esta parceria. Após o sucesso de Dragon Age: Inquisition, veio a decepção com Mass Effect: Andromeda, cuja execução inferior foi atribuída ao fato de ser produzido por um estúdio menor da Bioware, prometendo que Anthem faria jus à alta reputação da dev. Porém, infelizmente, a queda da graça é apenas confirmada com o novo game.
Um hino?
O caso de Anthem é, antes de tudo, mais de potencial não-cumprido do que de falta de qualidade – embora o título apresente uma pletora de problemas técnicos. Em desenvolvimento por seis anos cheios, é de coçar a cabeça quantos dos seus aspectos não alcançam a complexidade que deveriam, desde o gameplay, à narrativa e, pior ainda, sua variedade de conteúdo jogável.
Antes vendido como um mundo aberto cinemático e fluido, capaz de contar uma história em meio à jogatina online com três outras pessoas e uma penca de loot legal, nada neste pacote final é combinado de forma orgânica. Tudo, na realidade, é segmentado e costurado por uma infinitude de telas de carregamento. Além disso, há uma série de incoerências em sua apresentação.
O jogo coloca o jogador no papel de um Lanceiro, piloto de Lança (a.k.a. armadura) e protetor do Forte Tarsis, cercado por um mundo infestado de criaturas perigosas e forças do mal que querem apenas destruir o mundo como conhecemos. Este Lanceiro é tido como o único protagonista desta história, portanto é estranho começar uma missão com outros jogadores e personagens se comunicarem com você como se estivesse sozinho – uma das cutscenes finais, no entanto, mostra o jogador acompanhado de outros lanceiros (???).
Por outro lado, caso jogada solo, grande parte da campanha será mais demorada e difícil de se completar, especialmente nas maiores fases como a Mina da Tirana e a Provação de Helena Tarsis, que contam com chefes mais fortes ao final. Porém, conforme o jogador avança e completa atividades paralelas, pode ficar forte o bastante para encarar os inimigos mais fortes sozinho.
Embora o universo criado aqui pela Bioware seja visualmente interessante e seu cânone promissor, a trama que conduz essa campanha é decepcionante, para dizer o mínimo. O que começa como uma alta fantasia cheia de momentos climáticos (aquela cutscene de Freemark já é bem falada) torna-se uma sucessão de clichês de games de aventura como Uncharted, mas com muito menos espetáculo visual para nos distrair dos macetes batidos.
Há um grupo de heróis outsiders que não se dão completamente bem, traições que surgem do nada e um número impressionante de piadinhas que não decolam. O mais frustrante vem com a insistência em fórmulas e na repetição delas: mais de uma vez no game, o jogador deve passar por uma complicada fase em busca de um objeto precioso, para no fim uma cutscene tirar este objeto das mãos do protagonista.
Não estamos mais no Kansas
Contudo, um aspecto narrativamente divisivo de Anthem pode ser encontrado no Forte Tarsis. Como uma Normandy-lite, o forte é um pequeno hub que se expande conforme o jogador conversa com as personagens que nele habitam, iniciando linhas narrativas que evoluem de acordo com as escolhas de diálogo do jogador. Mas, não se enganem, mesmo quando algumas trocas são interessantes, nada aqui tem profundidade mecânica, servindo apenas para preencher barras de lealdade.
Essas barras de lealdade, no caso, se devem à presença de três facções no game: os Lanceiros, os Arcanistas e os Sentinelas. Trabalhando sua lealdade com as três, o Forte Tarsis cresce e mais personagens surgem para lhe atribuir missões. Mas, novamente, o sistema é um bocado superficial perto dos esquemas de lealdade vistos em Mass Effect e Dragon Age. Ao menos, há esse pequeno incentivo em conhecer mais do mundo de Anthem, e alguns diálogos são realmente bem escritos.
Saindo do forte, o jogo é outro. Literalmente. É no mundo selvagem e sem nome que Anthem se torna o looter-shooter em terceira pessoa que todos aparentemente estão bem mais interessados em conhecer, e nisso o jogo novamente apresenta alguns pontos altos – bem altos – e muitos baixos. O primeiro ponto alto é, sem dúvidas, o encantador visual com que é apresentado esse planeta inóspito, numa mistura de Pandora e Terra Média.
Há estátuas, torres e castelos antigos, junto de outras estruturas rudimentares e algumas misteriosas – como as Relíquias alienígenas desativadas -, que em conjunto com a densa vegetação criam uma ambientação que instiga nosso desejo de conhecer o que pode ter acontecido ali em milhares de anos. O fato de ser vertical também permite que o jogador mergulhe em águas profundas e veja outras estruturas e vida selvagem.
A engine Frostbite, que normalmente deixa a desejar nas versões de console, aqui tem uma de suas melhores implementações até hoje, contando com um suporte HDR que valoriza as texturas do solo e as altas luzes que refletem em cada estrutura. Graficamente, é um prato cheio – isto é, se sua conexão online cooperar, pois numa internet fraca este mundo demora a renderizar e tem suas texturas lavadas.
Depois da apresentação gráfica, vem os controles, que devem ser o outro principal motivo pelo qual diversos jogadores persistirão com o pacote. Expandindo as mecânicas de tiro e habilidades secundárias vistos em Mass Effect em conjunto com a mecânica de voo que te faz sentir como o Homem de Ferro, o loop de gameplay repetitivo de atirar e interagir com objetos ganha uma fluidez pouco vista. Adendo dos consoles padrão: o jogo atualmente roda melhor no PS4 que no Xbox One, atingindo seu alvo de 30 fps com mais constância.
Eu sou o Homem de Ferro
O uso da vibração do gamepad, tanto do PS4 (que valoriza o peso da Lança se movimentando) quanto do Xbox One (que pesa mais na vibração dos gatilhos), deixa tudo isso bastante tátil, sendo algo que faz a completa diferença na hora de colocar o jogador em meio a um árduo combate. O impacto de cada tiro, granada, míssil e raio de pulso pode ser sentido nas duas pontas, sua e do oponente, e só melhoram quando você e outros jogadores ativam um combo ou dano crítico em conjunto.
Locomover-se pelo mundo, então, é algo inigualável em Anthem, com a vibração dos propulsores e efeitos sonoros extremamente detalhados, dignos de uma produção de som da Lucasfilm. Através dos sons, o jogador pode identificar quando seu motor está prestes a superaquecer ou quando ele se resfria, no caso de quem prefere jogar sem o heads-up-display (HUD) e apreciar as imagens do mundo por inteiro.
Há quatro tipos de lança em Anthem, sendo elas: a Patrulheiro, que é um bom ponto de partida por oferecer equilíbrio entre velocidade e resistência; a Tempestade, que apesar da fraca armadura possui poderes elementais muito fortes; a Interceptador, que é acrobática e voa mais rápido, permitindo melhores esquivas em meio ao combate; por fim, a Colosso, mais lenta e forte, com acesso a maiores armas e um escudo de braço bastante legal (esta última experimentei na trial da semana anterior, no Xbox, e as outras no console da Sony).
Teoricamente, Anthem deveria ser um show de imersão, devido ao capricho visual e sonoro e o peso de seus controles. É aí que infelizmente entram os diversos problemas, começando pelos de conexão. Já vi games online lançarem com diversas dificuldades de conectar os jogadores ou oferecer estabilidade no momento da jogatina, mas aqui chegam a simplesmente desanimar o progresso pelo jogo. Vou segmentar essa seção em dois parágrafos.
Comecei jogando Anthem usando minha conexão wi-fi média, já que games como Destiny, The Division e até mesmo COD conseguiam rodar sem muitos lags e desconexões. No caso deste jogo, parece haver exigência em dobro com a conexão de internet, já que momentos bobos eram infestados não só de lags, mas também um efeito rubberbanding, aquele efeito de andar três passos e voltar dois – no vídeo de gameplay no início deste texto, este problema é bastante perceptível a partir dos 15 minutos.
Quando conectei o console direto ao modem de internet, que oferece uma velocidade decente que geralmente fica entre 30 e 120 mega, o efeito rubberbanding parou, mas outros problemas persistiram. O principal deles é a incapacidade de “recuperar os dados ao vivo” logo após a finalização de uma missão ou mesmo durante o gameplay. Não há causa aparente para este problema do meu lado, já que minha internet não caiu em nenhum dos momentos. Talvez falte otimização aos servidores.
Carregando…
Problemas como esses, no caso, não só tiram o encanto que Anthem inicialmente possui por sua apresentação estética, como também mostram um despreparo do game em relação aos seus servidores e comunicação com o jogador. Certa vez, este último problema de recuperação de dados me fez perder toda a experiência que adquiri numa missão, pois ocorreu entre seu término e a volta para o Forte Tarsis.
Já que a XP e a loot só são processadas na tela de retorno ao forte, os pontos adquiridos foram pro espaço e a loot coletada na missão só foi resgatada apenas depois de ter retornado de outra missão. Além disso, o problema só reforça a falta de praticidade que o jogador enfrenta para descobrir os itens que coletou e quanta XP ganhou, já que poderia muito bem abrir e equipar itens em meio às expedições – algo que até a demo de apresentação prometia anos atrás.
Ao lado de Destiny, que processa a experiência imediatamente e deixa visualizar e equipar novos itens com prontidão, ter que sair do mundo ou de uma missão e aguardar telas de loading demoradas apenas para equipar novas armas e dispositivos é algo completamente incompreensível, prejudicando o ritmo do jogo em níveis abismais.
Para piorar – e vai piorar muito ainda -, a loot coletada neste jogo é de longe a mais genérica vista dentro do gênero. As armas são todas esteticamente muito parecidas, variando apenas na cor de raridade de seus ícones e em suas estatísticas. Neste momento, já devo ter coletado centenas de fuzis de assalto Defensor e pistolas pesadas Contundente, nenhuma sequer com alguma variação visual.
A customização das lanças também deixa a desejar, inicialmente aparentando detalhada com a seleção de diferentes texturas para cada parte de armadura mas depois revelando sua falta de opções. No momento deste review, não há um formato de armadura diferente que possa ser desbloqueado através do progresso no jogo, e mesmo entre as que exigem moedas há poucas variações – dito isso, a edição Legião da Alvorada vem com um set alternativo de lanças.
O maior problema de Anthem, enfim, é a tremenda falta de variedade e criatividade de suas missões. Se há uma ou outra expedição principal ou Fortaleza que apresente visuais espetaculares e alguns puzzles ambientes, a maioria consiste de: 1. ir até um lugar e exterminar os inimigos; 2. ir até um lugar, ficar dentro de um anel até uma barra se preencher e eliminar os inimigos; 3. ir até um lugar, coletar e entregar um número de itens e eliminar inimigos. Já deu pra entender, né?
Ralando pra poder ralar mais
Isso então é somado negativamente com o lento avanço da experiência do jogador, que deve fazer o infame grind para passar de level em level e destravar novas lanças, itens e missões, para depois continuar o mesmo ciclo de novo e de novo. Agora, pensem nisso em meio aos problemas de conexão e perda de experiência que mencionei lá em cima? O processo se torna estressante, além de maçante.
Falando em grind, a quest line das Tumbas dos Legionários, que consiste em coletar diferentes itens e completar atividades para abrir portas e avançar na história, já ficou bem conhecida por frear o jogo completamente, exigindo uma longa checklist de feitos do zero. Após o patch de lançamento, esta missão ficou aliviada, contabilizando os feitos do jogador desde o início do game, o que já ajuda a deixá-la mais sucinta. Ainda assim, é uma escolha falha de design que comprova uma falta de preparo.
Já a missão final da campanha narrativa de Anthem mostra, sim, que a Bioware pode fazer algo realmente bacana dentro deste molde de jogo, oferecendo momentos épicos em escala e tom com autoridade. Pena que há tão pouco disso neste game em seu momento atual, que aposta na curiosidade dos jogadores por suas boas mecânicas centrais de voo e combate e um visual bem concebido. Podem ser o bastante, mas não por muito tempo.
A Bioware já divulgou seus planos de alimentar Anthem ao longo dos próximos nove meses, sendo que nestes primeiros três lançará o primeiro ato de seu Ano Um em três partes, com novas missões paralelas, eventos no mundo aberto e a possibilidade de repetir as missões de história em novas dificuldades. Aliás, “repetir” é uma palavra que o próprio título usa ao explicar o avanço para seu endgame, pedindo para que os jogadores repitam níveis de novo e de novo para adquirir mais XP.
Se “repetir” é a palavra, então espero que a Bioware sempre escute sua base de jogadores e não repita os mesmos erros nas próximas etapas de Anthem, que serão cruciais para manter a marca viva ao lado da fortíssima concorrência. Que, no calor da batalha, não desistam de melhorar seu game, que apesar de imensas falhas ainda tem seu potencial de oferecer uma experiência diferente de qualquer outra. Que, por fim, não deixem de escutar seu Hino em meio à cacofonia do mercado AAA.