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É fácil apontar o dedo para a febre de jogos battle royale que assola a indústria e criticá-la, mas mais difícil é encontrar um outro caminho para a evolução dos jogos multijogador. Por muito pouco a febre do momento não se tornou algo completamente diferente de PUBG, Fortnite e seus clones.

Desde que o mundo é mundo, sempre houve uma galera reunida em torno de uma partida disputada, com sangue no olho e vontade de vencer – e sempre houve uma galera maior ainda reunida ao redor, torcendo para esse ou aquele jogador. Quem é da velha guarda deve se lembrar dos fliperamas lotados, a multidão em volta de um jogador muito bom, vibrando com cada lance bem efetuado, dando palpites, testemunhando o espetáculo diante dos seus olhos.

Essa nossa tendência humana de querer ver o melhor (ou o pior) de outro ser humano se materializou nos jogos eletrônicos através do eSports e da imensa popularidade de canais no YouTube e Twitch, as vezes transmitindo conteúdo ao vivo. Para muitos, assistir jogos se tornou tão importante quanto consumir jogos diretamente. Essa nossa tendência também se manifestou, para o bem ou para o mal, em programas de TV sobre pessoas supostamente comuns vivendo conflitos de convivência supostamente normais ou muito bem orquestrados: os Reality Shows.

Então, porque não juntar as duas vertentes em uma única experiência?

Lara Croft e os saqueadores de audiência

Quando parecia que os canais de streaming iriam mudar a face da indústria e Pokémon era jogado coletivamente através do Twitch, coube a Lara Croft ser uma das pioneiras dessa fusão de jogabilidade e audiência. Em uma das características menos lembradas de Rise of the Tomb Raider, era possível através do modo Expeditions permitir que os espectadores alterassem a experiência de quem estava jogando.

A funcionalidade era exclusiva do aplicativo do Twitch para Xbox One, mas habilitava o poder de voto para a plateia: a cada seis minutos, a audiência poderia escolher uma carta que iria influenciar por cinco minutos tudo que acontecesse durante a partida. Assim, o jogo podia ficar mais difícil (desabilitando a regeneração de vida, por exemplo), mais fácil (com inimigos morrendo em circunstâncias específicas) ou mesmo mais engraçado (com a arqueóloga atirando galinhas no lugar de flechas com seu arco).

A integração foi celebrada pelos executivos de marketing do Twitch, mas não ajudou muito a destacar o jogo entre os campeões de audiência da plataforma.

O ataque da Amazona

Se a ideia agradou a equipe de marketing do Twitch, ela agradou mais ainda os donos do Twitch, a Amazon, que comprou a empresa por quase um bilhão de dólares. Jeff Bezos não ficou rico rasgando dinheiro e ele viu ali o potencial do streaming. O serviço que se popularizou através dos jogos eletrônicos estava com a faca e o queijo na mão para se tornar a ponta de lança de uma revolução. Afinal, se mais e mais jogos possuírem uma integração forte com a audiência, o Twitch emergiria triunfante como um monopólio de vídeo.

Não por acaso, o recém-montado estúdio de desenvolvimento de jogos da Amazon foi designado para tornar essa ideia uma realidade. Depois de um embaraçoso período de quase dois anos de silêncio, a Amazon Games anunciou o desenvolvimento de três jogos em setembro de 2016: New World, Breakaway e Crucible. Todos eles multiplayer, todos eles criados com o Twitch em mente. A audiência poderia participar de enquetes em tempo real, realizar apostas usando uma moeda virtual, acompanhar estatísticas e afetar os resultados. Segundo um comunicado oficial, eles seriam projetados “por streamers e para streamers”. Breakaway, o mais adiantado dos títulos, proclamava que cativar os espectadores seria fundamental: “não vença apenas a partida… vença a audiência”.

Lei de Darwin

Com seu atraso tradicional, entra em cena a Microsoft, que fechou um contrato de exclusividade com Darwin Project, assim como fez com PUBG. Na superfície, o jogo parece ser um clone dos battle royales convencionais. Mas há um bom motivo para ele ter ocupado o palco da apresentação da dona do Xbox durante a E3 2017. Darwin Project está de olho na audiência e quem assiste o jogo pode interferir no resultado dos conflitos.

A pequena Scavengers Studio entende que, para a fórmula funcionar, é necessária uma nova figura no cenário: o apresentador. Desta forma, como em um reality show de televisão, um dos jogadores ocupa a cadeira de diretor e atende os desejos do público, favorecendo jogadores e prejudicando outros. A própria história de Darwin Project abraça sua premissa: dez participantes são largados na vastidão gélida e seus confrontos serão televisionados, sob a desculpa que se trata tanto de uma pesquisa científica para evitar a próxima Era Glacial quanto também uma luta pelo IBOPE.

No limite

A estética dos “reality show” atinge seu ápice com SOS, o título de estreia da Outpost Games. Cada um dos 16 jogadores que participam de uma partida é tratado como uma espécie de celebridade, com uma apresentação no início, que lista suas características baseadas em sua performance em partidas anteriores, enquanto ele fala ao microfone e tenta impressionar a audiência. Com um modelo de customização de aparência, o resultado é uma mistura de perfis que lembra muito o público participante de programas de televisão, incluindo gestos simpáticos, poses e apelos.

A brincadeira fica séria quando os competidores são largados em uma ilha amaldiçoada. Na narrativa de SOS, os espectadores acompanham cada etapa da partida, mas o clima é muito mais sombrio que qualquer projeto que tenha passado por um comitê de executivos de TV. A ilha é habitada por monstros perigosos, capazes de infectar os concorrentes. Ainda assim, o maior perigo irá partir dos próprios jogadores: apenas três deles serão resgatados de helicóptero desse inferno tropical e somente quem conseguir recuperar um artefato mágico será aceito no resgate. Como encontrar e recuperar as tais caveiras de ouro não é tarefa para uma pessoa só, o jogo estimula alianças entre os participantes, mas também traições. Vale tudo diante das câmeras, inclusive derrubar quem já está sendo içado pela corda e roubar o artefato para si.

Cada partida de SOS é uma insana luta pela sobrevivência, onde um jogador que se aproxima pode ser confiável ou traiçoeiro. No desfecho, a audiência vota nos favoritos, nos que tiveram o melhor desempenho, e o jogo tem um ranking dos mais famosos. A desenvolvedora incentiva que os jogadores vistam a camisa e criem uma empatia com a audiência, fomentando dramas e recebendo dicas e vantagens dos espectadores em tempo real, como equipamento lançado de para-quedas.

Assim como a Amazon, a Outpost Games quer promover sua própria plataforma de streaming, a Hero.tv. Apesar do foco em SOS, o serviço também funciona como um portal de transmissão para outros títulos, como Dead by Daylight. Como um bom “reality show”, a empresa reconhece o poder das celebridades e dos influenciadores digitais e Snoop Dogg foi um dos pioneiros em SOS em janeiro deste ano. Atualmente, streamers de diferentes calibres tem levado o jogo para frente em seus canais com o apoio da empresa.

Cancelamento

Se o formato do reality show não é infalível nem na televisão e cancelamentos são comuns na indústria, sua transposição para os jogos eletrônicos parece não ter encontrado seu público ainda.

Outros títulos falharam em seguir os passos de Rise of the Tomb Raider, mesmo aqueles com forte presença em serviços de streaming. Shadow of the Tomb Raider pode chegar encontrando um ecossistema mais robusto nas plataformas e uma presença maior de público, mas ainda não há qualquer confirmação de que a integração com o Twitch retornará no novo título da aventureira.

A Amazon encerrou o desenvolvimento de Breakaway e seus outros títulos permanecem na geladeira sem nenhuma novidade divulgada. O futuro da própria Amazon Games permanece incerto. Fundada quatro anos atrás, com três estúdios diferentes, é preocupante que a desenvolvedora não tenha lançado nada até o momento ou sequer tenha uma previsão de lançamento.

Enquanto isso, Darwin Project adotou o modelo F2P após um começo conturbado com poucos jogadores. Embora esse tipo de decisão costume ser visto como um ato de desespero, é preciso compreender que uma mudança parecida catapultou Fortnite para o estrelato. Ainda assim, percebe-se que os desenvolvedores de Darwin Project cometeram uma falha de planejamento.

Mas a principal causa da aparente falência dos jogos reality show, antes mesmo que eles pudessem se tornar uma tendência, foi o próprio sucesso avassalador dos battle royale convencionais. Quando PUBG conquistou a primeira posição de vendas no Steam, à frente de medalhões lendários como Dota 2 e Counter-Strike, era óbvio que um sobrevivente definitivo havia emergido do caldeirão dos survival multiplayers. A Epic Games foi ligeira em adaptar seu Fortnite para o modelo e furtar o pódio para si, mas outras empresas falharam em se adaptar e o darwinismo foi implacável.

A aceitação desse destino aparece justamente em SOS Battle Royale. Como o nome diz, o título que uma vez ousou ser um reality show rendeu-se aos padrões estabelecidos, abdicou do público, abdicou dos monstros, abdicou do helicóptero, abdicou das traições e alianças, para se converter em um jogo onde 32 participantes seriam jogados na mesma ilha com o único objetivo de se matarem.

A Outpost Games ainda tentou manter a mitologia no ar:

[miptheme_quote author=”” style=”text-center”]”Você pensou que estava se inscrevendo para um reality show, mas a emissora decidiu que seria muito mais divertido para o público assisti-los lutando até a morte. Você já assinou o contrato, então você realmente não tem muita escolha. Se você quer viver, você tem que ser o último a ficar de pé”.[/miptheme_quote]

O texto criado para incorporar as mudanças na história anterior soou como sarcasmo nos ouvidos dos antigos jogadores, que rejeitaram em larga escala a nova proposta de SOS. Quem quiser jogar o título como era antes precisará fazer um download separado e essa decisão dividiu o público. O resultado agora é que raramente há competidores suficientes para se iniciar uma partida do SOS Classic e o SOS Battle Royale nunca atinge os 32 jogadores prometidos, sendo disputado em partidas com 16, 12 ou até 9 pessoas.

Por enquanto, não há nada que ameace o reinado dos battle royale. Porém, a moda poderia ter sido outra e poderíamos estar em um momento bem diferente agora, onde talvez você estivesse sorrindo para as câmeras, mandando beijos para uma audiência que não vê e metendo chumbo nos seus adversários. Com estilo, sempre.