“Não acredite no hype”, dizia Public Enemy. Hoje em dia, com expectativas colossais para todos os lados, a dúvida também está cada vez mais presente, quase como um ceticismo. Star Wars – Os Últimos Jedi e até mesmo o recém-lançado Vingadores: Guerra Infinita são, para muitos, fracassos. Desde seu anúncio, God of War é visto como um possível evento transformador da indústria dos games, o próximo grande “game-changer”. Há exatamente 1 semana, o exclusivo da Sony chegou às mãos dos fãs, tendo antes a aclamação de muitos veículos jornalísticos e influenciadores.
Não acredite no hype, então? Bom, isso é uma escolha individual a cada um, mas após passar horas e horas explorando o mundo nórdico de God of War, chega a minha vez de rasgar elogios ao game dirigido por Cory Barlog (que comandou God of War II, de longe meu capítulo favorito da série). Após 6 anos de volta ao forno, a franquia God of War aprendeu, assim como The Legend of Zelda, com a vasta afluência de novos gêneros e subgêneros no mercado. Embora tenha influenciado outros games anteriormente, gerando até clones descarados, God of War faz um retorno bastante semelhante ao que se viu com Resident Evil 4 lá em 2005.
Eu tenho a força!
Nova perspectiva de câmera? Checado. Cenários mais amplos a favor de maior exploração? Checado. Essência dos originais preservada mesmo debaixo de tantas mudanças? Para nossa sorte, checado. Embora não tenha o mesmo impacto surpreendente que o game de Shinji Mikami teve para o gênero survival-horror e a indústria como um todo, God of War apresenta a mesma coragem de evoluir que RE 4 esbanjou em seu desenvolvimento.
A começar pela abordagem narrativa, que à primeira vista pode parecer uma versão mitológica do drama pé-no-chão de The Last of Us. Na primeira cena, Kratos e seu filho Atreus fazem preparativos para a cremação da mãe. É tudo muito cinemático, com a presença bastante palpável de um diretor inspirado por trás do longo plano-sequência. Os diálogos são sutis e surgem em escala humana. Pode até mesmo parecer que se trata de um filme de Alejandro Gonzalez Iñarritu (Birdman / O Regresso), até que a ação chega – “boy”, é aí que a coisa fica gloriosa.
O primeiro encontro com um chefe no jogo faz emergir um Kratos mais próximo do monstro visto nos outros jogos, numa sequência deslumbrante de socos e golpes com seu machado mágico. Impossível não pensar na pancadaria alucinada que tanto se vê nos filmes de herói atuais. O melhor disso, na verdade, é perceber que não se trata mais de uma mera cutscene, mas sim que já estamos imersos na jogatina.
Essa imersão também se deve por conta dos gráficos, que estão facilmente entre os melhores da atual geração. Basta dar uma leve encarada na barba de Kratos e perceber a riqueza de detalhes em cada fio dela. Texturas, no geral, são bastante nítidas e convincentes, seja em paredes desfalcadas ou na pele de um monstro sendo rasgada violentamente pelo guerreiro. Pensar que todo esse volume de informação visual pode ser percebido in-game nos dá uma noção de como jogos ainda tem muito a mostrar quando se tem um estúdio disposto a tomar riscos com um grande orçamento em mãos. A ótima direção de arte do brasileiro Rafael Grassetti com certeza teve um papel definitivo para a presença de vistas tão memoráveis.
O combate armado visto aqui está entre os mais fluidos que vi em muito tempo, provando que até mesmo uma mudança substancial no ângulo de câmera não é capaz de matar a essência tão estimada na franquia. Uma maior atenção aos arredores e timing são exigidos, mas nada que seja demasiadamente complicado ou intransigível.
O Machado Leviatã, que funciona como o Mjölnir de Thor ou a chave de Ratchet, justifica ainda mais essa mudança estética e confere uma liberdade renovadora a como cada situação de combate será abordada, incentivando a experimentação e também, é claro, sendo de grande ajuda na exploração dos cenários. O mais importante é que, a todo momento, tudo está sob nosso controle, mesmo que as excelentes animações façam tudo parecer redondo como em um filme. Só é uma pena que não haja muitas armas diferentes ao longo da aventura, variedade pela qual a franquia era conhecida.
Não saia do caminho?
Muitos dos acertos de God of War se devem a essa sensação de estar no controle. Criticada pelo excesso de “filmes com botões” e “simuladores de caminhada”, a Sony demonstra o mesmo desejo de evolução visto em Horizon: Zero Dawn aqui, permitindo que a Santa Monica Studio entregasse uma experiência de jogo profunda que recompensa o jogador por, ora, jogar. Algumas situações são mais problemáticas que outras, e certas vezes é difícil ser babá da câmera quando 5 ou mais inimigos fortes estão obstinados a te eliminar, mas na maior parte os erros e acertos são por conta do jogador.
Após os primeiros momentos mais lineares, o jogo expande seu mundo, dando uma dimensão inicial da ampla estrutura da jornada que Kratos e Atreus trilharão. São claras a influências tomadas da série Arkham e mesmo o reboot de Tomb Raider, que contou com participação de Cory Barlog na direção criativa. Usando aqui a ideia de one-shot recusada no game de Lara Croft, Barlog (ou Balrog) investe nas mesmas sensibilidades de Metroidvania vistas nesses títulos semi-mundo aberto. Esse tipo de abertura, com puzzles de ambiente inteligentes e bem-executados, também ajuda a aliviar a inevitável fadiga do combate, que chega a surgir com a barragem de lutas no ato final (é um God of War, afinal). Também é ótimo sair remando em seu barco enquanto escuta histórias de reinos distantes ou apenas o papo furado entre personagens (as tiradas com a teimosia de Kratos em sair do caminho são inteligentes e um bocado metalinguísticas).
Portanto, é difícil ter uma noção concreta do todo de God of War até que se explore ao menos um pouco de todas suas possibilidades, distribuídas através de diferentes reinos. Tirando páginas até mesmo da franquia Darksiders, a aventura de Kratos esconde muitos tesouros e caminhos secretos que podem ser desbloqueados com a aquisição de uma nova habilidade ou ferramenta. Os tesouros mencionados são o que destravam power-ups, muito como os Olhos de Górgona e Penas de Fênix nos games originais. Aqui, eles vem na forma de Maçãs de Ithunn (Saúde) e Frascos de Hidromel Sangrento (Fúria Espartana), aumentando as respectivas barras a cada 3 unidades coletadas. Há outros coletáveis úteis, como Chama Congelada (usada para melhorar o Machado Leviatã), Poeira dos Reinos (que pode aprimorar talismãs) e muitos, muitos outros.
Kratos ainda pode coletar recursos materiais para confeccionar novas armaduras e pomos de arma, mas mais importante ainda pode usar parte desses materiais para aprimorar seu equipamento, que é principal forma de subir de nível e estar pronto para encarar alguns dos inimigos mais poderosos do jogo, tais como as Valquírias. Seja o que for: nunca se esqueçam de aprimorar suas coisas! Aliás, por mais que seja triste ter que apontar a seguinte coisa, God of War também evita um dos grandes males da indústria em sua progressão: não há uma única microtransação ou a necessidade de “grindar” excessivamente para se tornar mais poderoso.
Isso não é The Last of Us
Apesar da seriedade inicial da narrativa, o clima aventuresco da jornada nunca se perde. Novos personagens e locais são apresentados em um ritmo agradável. Mimir, a cabeça falante, é uma agradável surpresa e acompanha Kratos e Atreus pela maior parte do tempo, fornecendo informações importantes sobre o contexto da mitologia nórdica e o conflito no centro do enredo. Já os anões Brok e Sindri, ferreiros que confeccionam e aprimoram seus equipamentos, são um sintoma do “humor Marvel” na cultura pop, soltando piadas em momentos que não pedem nem um pouco por isso. A Bruxa da Floresta, por sua vez, é uma aliada importante e tem um papel crucial no jogo.
Mas a história, afinal, é sobre Kratos, Atreus e a misteriosa mãe do menino, com uma dinâmica familiar que evolui lentamente e cujos segredos também são revelados com muita paciência. É aqui que as altas expectativas podem machucar a percepção do jogador: apesar da grande escala e dos diversos momentos de tirar o fôlego (aquele dragão!), a trama não é tão ambiciosa quanto se pode acreditar, permeada por apenas algumas surpresas e aparições de maior impacto.
Trata-se de um primeiro capítulo em uma possível nova série, mas também não há muita urgência em estabelecer uma sequência com um foco mais amplo. Goste ou não, o único arco dramático em evolução aqui é o da relação entre pai e filho e o luto dos dois, e mesmo esse prefere não chocar. Achou que era The Last of Us? Achou errado!
No entanto, se o drama não é o mais surpreendente, pelo menos o excelente trabalho de dublagem torna tudo mais poderoso. Por isso a Maximal Studio está de parabéns com a localização do jogo para o português, elencando os ótimos Ricardo Juarez e Felipe Volpato como Kratos e Atreus, respectivamente. Juarez (que, diga-se de passagem, fez um ótimo trabalho em Ryse: Son of Rome) está completamente distanciado de sua persona de Johnny Bravo e assumindo a voz grave do Fantasma de Esparta com autoridade, transitando muito bem entre os momentos de ira e calma.
Já Volpato convence na inocência e na sagacidade de Atreus, que segundo uma personagem é “muito sábio para sua idade”. O trabalho de captura de movimento dos atores Christopher Judge e Sunny Suljic (que dão suas vozes aos protagonistas em inglês) ajuda ainda mais a cativar, até no menor dos gestos. A trilha musical de Bear McCreary é outro aspecto digno de nota, expressando muito bem a grandiosidade da aventura e lembrando os trabalhos de Howard Shore (O Senhor dos Anéis) e Basil Poledouris (Conan, o Bárbaro) da melhor maneira.
Porque falar de tudo isso se o que importa é o jogo? Pois tudo no game é, na verdade, uma coisa só. Há de se dizer que os jogos Uncharted são excelentes no que propõem, mas lá ainda há uma separação clara entre cena e jogo, o que pode criar inconsistências e tirar a paciência de alguns. God of War, por sua vez, consegue mesclar um roteiro pré-estabelecido com a ação do jogador de maneira que, no fim de tudo, esta tenha sido sua aventura também. E é claro, que tenha também uma desculpa a mais para descer a porrada em monstros e arremessar aquela maravilha de machado por aí.